A execução de empresas que não participaram da fase de conhecimento do processo.
“O Brasil não é para principiantes”. A frase do compositor e maestro Antônio Carlos Jobim já foi utilizada muitas vezes, nos mais diversos tipos de debates, desde rodas de botecos até reuniões de conselho de empresas, especialmente para tentar traduzir a complexidade da cultura brasileira e a volatilidade do ambiente de negócios no país.
A célebre declaração, que virou ditado popular, sempre veio a calhar – ou a tentar justificar – em situações relacionadas a decisões judiciais – especialmente as proferidas na Justiça do Trabalho – que impactam as relações e o andamento dos negócios no país.
Muitos se questionam: Como explicar ao investidor estrangeiro interessado em injetar dinheiro e buscar novas oportunidades no Brasil que, quando se trata de determinados assuntos, principalmente alguns relacionados à Justiça trabalhista, tudo depende de diversas nuances e é diferente de todos os conceitos, inclusive, muitas vezes, diferente do que a própria legislação determina?
Como explicar a uma empresa que ela teve suas contas bancárias bloqueadas para quitar débitos trabalhistas decorrentes de um processo que jamais teve conhecimento, por supostamente pertencer ao mesmo grupo econômico da devedora principal? Como dizer que as proteções constitucionais ao devido processo legal, à legalidade, à coisa julgada e à ampla defesa podem ser relativizadas ou mesmo totalmente afastadas pelo Judiciário?
Como explicar que o conceito de grupo econômico de empresas e suas repercussões no mundo são completamente subjetivos, diferentes, dependendo da esfera do Judiciário em que se esteja debatendo o tema?
Infelizmente, a dificuldade para explicar esse imbróglio jurídico perdura há décadas.
Durante cerca de 18 anos, entendeu-se que o responsável solidário integrante de grupo econômico que não participou da fase de conhecimento do processo e que, portanto, não consta no título executivo judicial como devedor não pode ser sujeito passivo na execução. Esse era o teor da Súmula 205 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), editada em meados de 1985.
No entanto, com o cancelamento da mencionada súmula em 2003, a doutrina e a jurisprudência brasileira voltaram a considerar a possibilidade de incluir empresas na execução, mesmo que não tenham participado da fase de conhecimento do processo. Para isso, tomou-se como fundamento a responsabilidade solidária de empresas pertencentes ao mesmo grupo econômico, imposta pelo §2º do art. 2º da CLT. A justificativa é que o direito processual não poderia se sobrepor ao direito material, já que o primeiro somente deveria existir como instrumento de aplicação do segundo.
A possibilidade de inclusão das empresas, com elasticidade de interpretação do conceito de grupo econômico feita por muitos julgadores (tema esse que vale não só um artigo, mas uma tese de doutorado), criou um perigoso precedente, que torna ainda mais controversa a busca da satisfação da dívida trabalhista.
Para muitos juristas e advogados que trabalham no ramo, trata-se de verdadeira ameaça contra o patrimônio daqueles que aparentam pertencer ao tal “mesmo grupo econômico de empresas”. Aos que defendem a não inclusão das empresas na fase de execução para satisfação de débitos trabalhistas, há um evidente desrespeito aos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal, principalmente ao princípio da legalidade, da ampla defesa e do devido processo legal, além de afetar a própria segurança jurídica das relações no país.
Como não podia deixar de ser, as fortes medidas judiciais de expropriação contra empresas que não participaram do processo de conhecimento fez com que o debate jurídico chegasse ao Supremo Tribunal Federal (STF), em diversas ações, como as arguições de descumprimento de preceito fundamental 488 e 951 (ADPF 488 e ADPF 951), o Recurso Extraordinário com Agravo 1.160.361–SP (ARE 1.160.361/SP) e o atual Tema 1232.
No ARE 1.160.361/SP, o STF entendeu que o redirecionamento da execução para empresa que não tenha participado da formação do título executivo seria ilegal, por violar as determinações previstas no art. 513, § 5º, do CPC (“O cumprimento da sentença não poderá ser promovido em face do fiador, do coobrigado ou do corresponsável que não tiver participado da fase de conhecimento”), e inconstitucional, por violar os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Em relação às ADPFs 488 e 951, já existe voto do ministro Gilmar Mendes, apesar de, no momento, ambas estarem suspensas a pedido do ministro Dias Toffoli.
Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes propõe a declaração de “incompatibilidade com a Constituição Federal das decisões judiciais proferidas pela Justiça do Trabalho que incluem, na fase de execução, sujeitos que não participaram da fase de conhecimento, ao argumento de que fazem parte do mesmo grupo econômico, a despeito da ausência de efetiva comprovação de fraude na sucessão e independentemente de sua prévia participação no processo de conhecimento ou em incidente de desconsideração da personalidade jurídica”.
No mesmo sentido, o STF, em análise minuciosa da questão, vislumbrou que a controvérsia debatida no RE 1.387.795 transcendia o direito discutido entre as partes, reconhecendo a repercussão geral da matéria ao criar o Tema 1.232 (que ainda não tem data prevista de julgamento), apesar de o ministro Dias Toffoli ter determinado a suspensão no país de todas as execuções trabalhistas que debatam o mesmo tema.
Ainda é muito cedo para cravar qual será o entendimento do STF sobre o tema, mas, ao que tudo indica, a mais alta corte brasileira tende a garantir a vigência das normas e princípios protetores do contraditório e da ampla defesa, encerrando de uma vez por todas as fortes medidas persecutórias e executórias praticadas em muitas ocasiões pelo Judiciário trabalhista.
Não se está aqui a defender o empresariado ou atribuindo mais valor ao capital do que ao trabalho. Pelo contrário, o que se busca com o debate é a consolidação da segurança jurídica processual, quando o assunto é tratado na Justiça do Trabalho. A segurança jurídica é necessária não só ao empresário, mas também para o desenvolvimento do país e, portanto, a todos os trabalhadores, com relações seguras e amplitude da oferta de emprego.
É elemento básico do contraditório e da ampla defesa que um título executivo não pode ser apresentado contra quem não consta dele. Sem título executivo, não existe (ou não deveria existir) execução.
Ao que parece, é difícil defender que o contraditório e a ampla defesa foram amplamente respeitados, quando o conceito do instituto que justifica a execução em desfavor de empresa que não participou da fase de conhecimento não pode, sequer, ser discutido.
O que se busca garantir com o julgamento do tema no STF é a tão almejada segurança jurídica, princípio constitucionalmente assegurado. Em outras palavras, que seja dado ao suposto codevedor, responsável solidário, o mesmo direito à ampla defesa e ao devido processo legal a que o devedor principal teve acesso no processo de conhecimento. Somente depois disso, então, que ele seja obrigado (ou não) a pagar o montante a que, comprovadamente, deu causa.
Segurança jurídica, que assegure os direitos e garantias constitucionais, torna o Brasil um ambiente adequado para principiantes, amadores, experts, enfim, para todos.