As “muralhas” e o desenvolvimento sustentável
O Instituto de Engenharia tem, por tradição, discutir questões estratégicas e propor soluções. Afinal, problemas são a matéria-prima da Engenharia! Não foi diferente no dia 19 de julho de 2023, quando vários profissionais e atores públicos se reuniram, presencialmente e remotamente, para o “Debate sobre uma nova ligação Planalto à Baixada Santista”.
As limitações dos acessos terrestres atuais e o desenvolvimento sustentável regional, estadual e nacional foram abordados sob vários aspectos, com especialistas analisando e propondo alternativas.
Ficou bem claro que o cenário atual exige decisões e ações estratégicas de curtíssimo, curto e médio prazo. Trata-se de uma questão de Estado em seu sentido mais amplo, apartidário e que extrapola períodos de mandatos eletivos, sob pena de comprometer o futuro de São Paulo e do Brasil. E para respondê-la com a urgência imprescindível, é preciso de arrojo e dinamismo já demonstrado pelo governador Tarcísio de Freitas, ao longo de sua carreira. Empenho que sempre deverá ter como premissa o desenvolvimento sustentável, equilibrando aspectos econômicos, sociais e ambientais, de maneira a, mais uma vez, superar os desafios da Serra do Mar: “A Muralha”, como historicamente é conhecida desde os tempos do início da colonização portuguesa.
Os cerca de 700 metros de desnível entre o planalto e o litoral nunca foram empecilho para o povoamento e desenvolvimento do Estado de São Paulo e a, agora, Região Metropolitana da Baixada Santista (RMBS) sempre foi o ponto de partida.
Na Ilha de São Vicente surgiu o primeiro hospital do Brasil, na Vila de Santos. Nesse mesmo povoado, o porto em águas abrigadas nasceu, para se tornar o principal complexo portuário do País. Também dali partiram expedições que, sob condições penosas, mas obstinação impávida, venceram a “Muralha” para colonizar o planalto, inclusive fundando a Cidade de São Paulo. E do planalto partiram as “Entradas” e “Bandeiras” que contribuíram majoritariamente para dar ao Brasil sua conformação continental.
Da Baixada Santista, também partiu a expedição de Estácio de Sá, que resultou na fundação da Cidade do Rio de Janeiro.
O Porto de Santos participou de todos os ciclos econômicos do País, sempre protagonista. Isso só aumentou com o início do Ciclo do Café, no século XIX. E foi nesse período que, por ele, chegaram imigrantes que ajudaram a consolidar e expandir a pujança econômica do Estado de São Paulo.
A evolução desse processo resultou na transição das antigas picadas para a Calçada do Lorena, pioneira estrada pavimentada. A importância cada vez maior do café levou à Estrada da Maioridade, posteriormente Caminho do Mar.
Também no século XIX, para ligar as zonas produtoras ao Porto, foi construída a ferrovia da São Paulo Railway (SPR), iniciada pelo visionário Irineu Evangelista de Souza, Visconde de Mauá, mas concluída por ingleses. Depois, veio a Estrada de Ferro Sorocabana.
Consciente da importância do Porto de Santos para a economia regional e nacional, o Governo Imperial o transformou no primeiro porto organizado do Brasil. Para transformá-lo de “porto maldito”, em função de concomitantes epidemias, o Governo da Província de São Paulo investiu no saneamento da cidade.
O desenvolvimento industrial, associado à sempre importante agropecuária de São Paulo, exigiu a construção da Via Anchieta, um desafio hercúleo, superado com técnica e empenho de migrantes, que também contribuíram para a grandeza do Estado de São Paulo.
A proximidade do porto levou à criação do Parque Industrial de Cubatão, basicamente voltado ao processamento de commodities oriundas do complexo portuário.
Cada vez mais relevante na economia nacional, agora também o Estado mais industrializado do Brasil, a evolução do comércio exterior exigiu, mais uma vez, a superação da “Muralha”, agora pela primeira pista da Rodovia dos Imigrantes. No entanto, a Via Anchieta permaneceu como único acesso rodoviário de cargas entre o planalto e a Baixada Santista.
A matriz de transportes entre o planalto e a Baixada, predominantemente rodoviária desde os anos de 1950, agora evidenciava as limitações impostas pelo rodoviarismo e a falta de investimentos em ferrovias.
A falta de preocupação com o meio ambiente resultou em danos ambientais ao bioma da Mata Atlântica, descalvando a Serra do Mar. Também gerou sérios problemas de saúde à população de Cubatão. A ação decisiva do Governo do Estado obrigou à redução da poluição industrial e promoveu o reflorestamento da Serra do Mar, com engenhosidade e obstinação.
No início dos anos de 2000, a “Curva da Onça”, na Via Anchieta, gerou um colapso em plenas festas de final de ano, que escancarou o que já era mais do que previsível: os acessos rodoviários não comportavam a crescente demanda.
A pista descendente da Rodovia dos Imigrantes foi, então, construída. Obra mais uma vez de alta complexidade técnica, sua implantação reduziu em cerca de 70% os impactos ambientais gerados pela primeira pista. Porém, a Via Anchieta permaneceu como único acesso de caminhões entre o planalto e o porto, com uma média de 10 mil veículos de carga por dia.
Essa nova pista, no entanto, ampliou gargalos logísticos que ainda estão sendo solucionados, mais de 20 anos após sua conclusão.
O agendamento de veículos de carga tem sido uma solução racional, mas, em razão das restrições ambientais à criação de pátios de espera, no planalto e ao longo do traçado das rodovias, paliativa.
O fato é que o Sistema Anchieta-Imigrantes já apresenta níveis de serviço preocupantes, sobretudo em períodos de escoamento de safra, associados a períodos de férias e feriados prolongados. As longas filas e congestionamentos resultam em encarecimento de fretes, cenário propício para a ação de marginais e transtornos aos usuários.
A Via Anchieta, um triunfo da Engenharia quando de sua construção, apesar das obras de reforço estrutural de seus viadutos e melhorias subsequentes, é um projeto antigo, de manutenção cara, cujas características geométricas e operacionais impedem/prejudicam o tráfego de cargas especiais e de veículos de maior capacidade de carga. Com isso, além de impactar negativamente os custos logísticos (o chamado “Custo Brasil”), prejudicam o meio ambiente por resultarem em maior emissão de poluentes.
As recentes renovações das concessões ferroviárias de linhas que acessam o complexo portuário e a criação da Ferrovia Interna do Porto de Santos (Fips) ampliarão a capacidade operacional desse modo de transportes para entre 100 milhões e 115 milhões de toneladas por ano. Porém, a previsão tendencial de operação do Porto de Santos, para 2040, é de 240 milhões de toneladas por ano, contra os cerca de 162 milhões, em 2022. Ou seja, a participação do modal rodoviário também aumentará!
Novas ligações entre o planalto e a Região Metropolitana da Baixada Santista vêm sendo estudadas ao longo do tempo. Talvez a mais antiga seja a rodovia entre Parelheiros e Itanhaém, que contribuiria para reduzir a demanda do Sistema Anchieta-Imigrantes, no que se refere ao acesso aos municípios do sul da RMBS.
O Porto de Santos tem potencial para expandir suas operações, mas é preciso que seus acessos terrestres comportem essa demanda.
Em função disso, surgiram alternativas, que incluem uma nova pista da Rodovia dos Imigrantes e uma ligação entre Suzano, a partir do Rodoanel Leste, e a Área Continental de Santos.
A ligação entre Suzano e Santos, que passou a ser conhecida como “Linha Verde”, não é apenas uma nova rodoferrovia. Em verdade, é parte de um complexo logístico que envolve a criação de plataformas logísticas ao longo de seu percurso.
Em Suzano, ela representará a oportunidade de desenvolver a porção leste da Região Metropolitana de São Paulo. Em Santos, permitirá a ocupação de áreas disponíveis para a implantação de atividades portuárias, retroportuárias e industriais, tendo o Porto de Santos como trunfo logístico.
É importante destacar que a Área Continental de Santos foi considerada a de melhor potencial para implantação desses tipos de atividades, segundo estudos feitos pela Fundação para o Desenvolvimento Tecnológico da Engenharia (FDTE) e pela empresa ALG, financiada pelo governo espanhol, ambos elaborados na primeira metade dos anos de 2010.
Além disso, a cidade de Santos é considerada apta a sediar uma Zona de Processamento de Exportação (ZPE) desde 2017.
As ZPEs são equivalentes às Zonas Econômicas Especiais (ZEEs), das quais existem mais de 7,5 mil no mundo, mais de 2,5 mil só na China. Graças a elas, a China, em menos de 30 anos, saiu da incipiência tecnológica e econômica para se tornar a 2ª economia do mundo, referência em produção científica e tecnológica, gerando duas vezes mais patentes do que os EUA.
Enquanto isso, no Brasil, desde a criação do regime de ZPE, há 25 anos, apenas uma está em efetiva operação (Pecém/CE), com outras quatro ainda em fase de aprovação/implantação, com a de Parnaíba/PI, mais adiantada, e a de Uberaba/MG e a de Cáceres/MT implantando suas infraestruturas. Há que se destacar que, fruto da atualização do regime de ZPE, em 2021, houve aprovação da primeira Zona de Processamento de Exportação privada no País, em Aracruz/ES.
Trata-se de uma questão estratégica, acima de interesses político-partidários e pessoais, que tem tido contra si o “tempo político”, a burocracia estatal e o rigor draconiano da legislação ambiental.
No caso da RMBS, tanto uma nova pista da Rodovia do Imigrantes como a ligação Suzano-Santos não são excludentes. Pelo contrário, ambas são necessárias e devem ser concebidas para evitar a piora ou novos gargalos logísticos.
A Engenharia já demonstrou sua capacidade técnica de superar fisicamente a “Muralha” de forma cada vez menos ambientalmente impactante. Assim, não é concebível que obras tão estratégicas para o desenvolvimento do País levem de sete a dez anos para serem viabilizadas, tendo o licenciamento ambiental e judicializações como suas principais impedâncias.
Investir em infraestrutura é, sem dúvida, uma forma objetiva de conciliar o desenvolvimento econômico com o equilíbrio ambiental tão almejado! Nesse sentido, novas obras viárias, incorporando novos conceitos de projeto e novas tecnologias, tendem a reduzir significativamente impactos ambientais negativos.
Também é importante relevar que o cenário pós-pandemia demonstrou a necessidade de reindustrialização do Ocidente. Não à toa, tanto o Governo Federal como o do Estado de São Paulo definiram a reindustrialização como meta prioritária.
São Paulo sedia dois portos públicos, enquanto estados próximos dispõem de complexos públicos e privados que tendem a ser cada vez mais competitivos. Isso é bom para o País, mas não pode inibir o potencial de expansão do Porto de Santos, que ainda é muito grande.
Mesmo em meio a tantas restrições burocráticas e ambientais, o Porto de Santos se mantém como principal complexo portuário do Brasil, responsável por cerca de 28% da corrente comercial do país.
É um porto sob jurisdição federal, mas é o porto do Estado de São Paulo! O Porto de São Sebastião é delegado ao Estado de São Paulo, de fato. Porém, seu perfil é diferente, e seu potencial de expansão é fisicamente limitado.
O aproveitamento de áreas próximas ao porto para a implantação de atividades industriais de alto valor agregado, alta tecnologia e baixo impacto ambiental é uma opção racional, tanto que adotada nos principais portos do mundo. Estive recentemente em Rotterdam e Antuérpia, e pude constatar o que é visão estratégica, de Estado, no planejamento portuário e industrial.
A RMBS dispõe dessas áreas! E o novo regime de ZPE permite o aproveitamento de áreas disponíveis em outros municípios da região, com amplos benefícios econômicos e sociais, que também podem gerar recursos financeiros para ações de proteção/recuperação ambiental em espaços desprotegidos.
O secretário estadual de Desenvolvimento Econômico, Jorge Lima – homem cujo dinamismo e lucidez impressionam -, em recente evento, criticou o fato da Baixada Santista representar apenas 2% do PIB do Estado de São Paulo. Assim, a ampliação de atividades econômicas na região, com foco em porto-indústria, contribuirão para um melhor equilíbrio regional, com efeitos amplos. No caso específico da ligação Suzano-Santos, ela também potencializará a criação de áreas afins no planalto.
Isso representará uma nova economia, com aumento da arrecadação tributária e geração de milhares de empregos. E os recursos auferidos, seja pela aplicação da receita tributária, seja por medidas compensatórias, contribuirão para a melhoria da qualidade de vida dos paulistas, para a manutenção de programas sociais e para suporte a programas ambientais.
Esses recursos, por exemplo, poderiam proporcionar a desocupação de áreas de risco e de mananciais, pela construção de habitações em áreas adequadas, socialmente integradas, além da geração de empregos que garantirão dignidade e futuro para os habitantes das regiões beneficiadas.
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) têm sido considerados como referências a serem adotadas mundialmente. A melhoria da logística afeta positivamente vários deles.
O Estado de São Paulo sempre soube enfrentar desafios, e sempre soube superar todas as “muralhas” que surgiram em seu caminho. Sua condição histórica e atual são o resultado desse dinamismo empreendedor e inovador. O desafio, agora, é provar que é possível conciliar desenvolvimento econômico com preocupação ambiental e social a partir de uma visão de Estado, equalizando interesses federais, estaduais, municipais e da iniciativa privada.
Novas ligações entre o planalto e a RMBS – e não apenas uma – contribuirão para que São Paulo seja, uma vez mais, uma referência do potencial empreendedor do povo paulista e brasileiro.
O Brasil é um “berço esplêndido”, mas não pode considerar as restrições ao seu desenvolvimento sustentável como “zona de conforto”. É preciso acordar! O Estado de São Paulo pode e deve assumir o protagonismo responsável na superação de todas as “muralhas” que se apresentarem, como o faz desde os tempos dos primeiros paulistas, dos migrantes, dos imigrantes e de todos os que o abraçaram em seus corações.