Quando as autoridades portuárias no Brasil serão autoridades portuárias?
O Brasil conta com 36 portos públicos, sendo 18 administrados pelo Governo Federal e 18 delegados a estados ou municípios, incluindo sete autoridades portuárias públicas e uma recentemente posta sob controle e gestão de fundo private equity.
Além disso, possui 144 terminais privados (TUP) localizados fora das fronteiras jurisdicionais das áreas dos portos públicos, que movimentam em torno de 70% da carga à granel do país (Agência Nacional de Transportes Aquaviários, Antaq, 2022), contrastando com os terminais arrendados que movimentam 30% dessa carga movimentada sob jurisdição das autoridades portuárias.
Desde 1993, com a publicação da Lei 8.630, a chamada Lei dos Portos, o país criou as bases para que a governança das autoridades portuárias se desenvolvesse sob o modelo Landlord Port, modelo este de sucesso global, onde, conceitualmente, as autoridades portuárias funcionam como catalisadores econômicos, promovendo investimento, gerando receita fiscal e emprego, impulsionando o volume de comércio e contribuindo para o crescimento do produto interno bruto do país.
O referido marco regulatório abordou medidas de governança básica na direção do modelo Landlord Port, transferindo a operação portuária para as empresas privadas e criando o Conselho de Autoridade Portuária (CAP). Um conselho deliberativo e autônomo formado pelo Poder Público, pelas empresas operadoras, pelos trabalhadores e usuários do porto.
Contudo, o governo federal permaneceu no controle centralizado das autoridades portuárias, assim, destoou do modelo Landlord Port de classe internacional pretendido, não atendendo os apelos da comunidade portuária quanto à descentralização administrativa e a participação de representantes do setor privado, juntamente com autoridades governamentais, na gestão dessas verdadeiras agências de desenvolvimento, o que garantiria o controle democrático e estratégico da Autoridade Portuária, sob a supervisão de auditores independentes.
Entretanto, ainda que em um cenário de modelo de gestão incompleto, os terminais portuários arrendados, sob a jurisdição das autoridades portuárias, alcançaram rapidamente padrões de eficiência operacional de classe internacional e, em alguns casos, superaram padrões já considerados de excelência.
As dificuldades de gestão pela não consolidação do modelo Landlord Port levaram a uma nova intervenção regulatória em 2013, qual seja, a Lei 12.815/2013, que acabou por submeter as autoridades portuárias a uma gestão ainda mais centralizada no Governo Federal. Segundo o Relatório de Auditoria Operacional do Tribunal de Contas da União (TCU, 2020), a centralização da gestão das autoridades portuárias foi motivada por três pilares de percepção do governo: (i) a necessidade de visão integrada da política pública setorial; (ii) o desenvolvimento de expertise especializada na matéria e (iii) a dificuldade das autoridades portuárias de proverem quadros técnicos adequados.
Fundamentalmente, a Lei 12.815/2013 visava permitir aos TUPs a movimentação de cargas de terceiros, sem restrições. De acordo com a Lei 8.630/1993 e o Decreto 6.620/2008, mais de 50% da carga movimentada do TPU deveria pertencer ao proprietário do terminal. A Lei 12.815/2013 superou essa restrição, mas prejudicou o modelo de governança do modelo Landlord Port nos seguintes aspectos (TCU, 2020): (i)) mudança do papel dos CAPs de deliberativo para consultivo; (ii) manutenção da exclusividade da escolha, pelo governo federal, dos diretores executivos e CEOs das Autoridades portuárias; (iii) decisões de investimento aprovadas e conduzidas pelo Governo Federal; e (iv) burocracia impulsionada pela sobrecarga de prestação de contas que prejudica a governança das autoridades portuárias.
Assim, a Lei 12.815/2013, proporcionou uma mudança no ambiente de negócio dos portos no Brasil, onde o local dos terminais de contêineres passou a ser extremamente relevante para o seu modelo de negócios, já que os terminais de contêineres fora da jurisdição das autoridades portuárias não negociam com sindicatos de estivadores, nem pagam arrendamentos de acordo com seu desempenho operacional ou mesmo outorgas de licitações. Por outro lado, justamente por não estarem sob a jurisdição das autoridades portuárias, esses terminais devem construir sua infraestrutura e superestrutura gerenciando a manutenção.
Certo é que a excessiva centralização da gestão das autoridades portuárias no Governo Federal é a gênese da sobrecarga de controles (accountability overload). Contudo, a mais curiosa razão para aprofundar a centralização da gestão das autoridades portuárias, revelada no relatório (TCU, 2020), foi a necessidade de proporcionar a Brasília uma visão integrada da política pública setorial para o desenvolvimento de expertise na matéria.
Em outras palavras, desmontou-se um marco econômico-regulatório com viés descentralizador, como a Lei 8.603/1993, para construir um marco econômico-regulatório centralizado, como a Lei 12.815/2013, para oportunizar a compreensão do setor pelo governo central, que em tese, já deveria compreendê-lo. O impacto dessa ação na época foi brutal, haja vista que licitações e contratos de arrendamentos foram suspensos, ocasionando uma perda de R$ 44 bilhões em investimentos diretos pelos arrendatários, segundo a Associação Brasileira de Terminais Portuários – ABTP.
Com a turbulência política que o país enfrentou, durante e após o impeachment presidencial em 2016, acrescido das consequências desgastantes promovidas pela mudança do marco econômico-regulatório de 2013, o Governo Brasileiro criou um ambiente de negócios para suas autoridades portuárias não recomendado na literatura, passando então a enfrentar as consequências e esforçando-se para mitigar as inconsistências através de regulamentação, principalmente, via resoluções normativas e portarias ministeriais, numa espiral de longo prazo visando a estabilização da governança portuária
Tal cenário atravessou o Governo Brasileiro, eleito em 2019, o Governo Bolsonaro, cujo processo ideológico passou a induzir à privatização das autoridades portuárias, com base na controversa experiência australiana em alguns portos. Experiência esta cujos resultados vêm levando a Comissão Australiana de Concorrência e Consumo (ACCC) a constantes apelações ao Tribunal Federal, frente aos atos “anticompetitivos” e “ilegais” dos consórcios privados no controle das autoridades portuárias. Isso sem falar nas sobretaxas cobradas pelos operadores portuários para atender a demanda por retornos financeiros a curto prazo, exigidos pelos consórcios, de forma a atender aos seus acionistas.
Observando o resultado das autoridades portuárias brasileiras, mesmo no modelo Landlord Port inacabado e do controle da gestão centralizada e da vantagem regulatória aos TUPs, gerada pela Lei 12.815/2013, dados estatísticos da Antaq demonstram que houve um aumento de marketshare de apenas 5% da movimentação de contêineres para os TUPs em relação aos terminais arrendados, desde então.
No entanto, essa comparação não infere perda em toneladas/TEU movimentadas pelos terminais arrendados, uma vez que os embarques equivalentes a 20 pés (TEU) permaneceram estáveis desde 2014, com uma pequena vantagem para os TUPs, entre 2016 e 2017, certamente devido à crise político econômica que o país atravessou. Desta forma, o próprio modelo Landlord Port, mesmo que incompleto e mergulhado num ambiente de negócios inadequado, mostrou resiliência.
Contudo, membros do governo Bolsonaro passavam a impressão de uma suposta impotência de si mesmo em desburocratizar e descentralizar a gestão das autoridades portuárias, muito embora tenha enfrentado com sucesso no congresso a reforma previdenciária, certamente item mais perceptível e sensível para a sociedade do que a modernização da gestão das autoridades portuárias. Fatos contraditórios com a curiosa retórica de impotência anunciada.
Durante a gestão do governo Bolsonaro, não se promoveu a descentralização administrativa das autoridades portuárias. Mas visando agregar valor aos ativos portuários com foco no processo de privatização, buscou-se dar aos seus gestores mais independência administrativa por meio de diversas portarias para acelerar as avaliações de investimentos na infraestrutura portuária.
Durante esse processo, o governo promovia uma campanha de marketing pró privatização das autoridades portuárias fazendo avaliações desconexas, como a comparação da variação da taxa Selic com o patrimônio líquido das principais autoridades portuárias do país. Como se uma autoridade portuária fosse a razão em si mesmo, onde exclusivamente o seu resultado financeiro é que seria a sua medida de valor e não o seu resultado econômico como agente de desenvolvimento do país.
Nem a Autoridade Portuária de Santos, o maior porto da América Latina, escapou do ataque sobre as suas demonstrações contábeis, quando uma provisão para devedores duvidosos, relativa a uma controvérsia contratual junto a um arrendatário, levando a resultado contábil negativo no exercício fiscal de 2018, foi desonestamente usada pelo governo como se prejuízo operacional o fosse.
O fato é que, hoje, todas as autoridades portuárias no Brasil, mesmo não adequadamente estruturadas e nem contando com um ambiente de negócio amigável, moldado pelo governo central, vem apresentando recordes de movimentação. Este cenário deixa claro que o objetivo do governo Bolsonaro em migrar a gestão das autoridades portuárias para o modelo Private Service Port indica um movimento tipicamente de viés ideológico e não por necessidades operacionais ou econômicas.
Já há um bom tempo, o comércio marítimo internacional vem enfrentando a voraz busca dos grandes transportadores marítimos à aquisição de terminais em todas as rotas mundiais, de forma a atender ao excesso de tonelagens disponíveis em suas frotas, a conhecida verticalização, provocando riscos à livre concorrência na logística nacional, dada pela posição dominante e o poderio econômico desses grandes transportadores marítimos no comércio internacional. A privatização de autoridades portuárias certamente socorreria esses megacarriers, superando seus erros de percepção de demanda.
Até o momento, a única autoridade portuária privatizada (Private Service Port), a Companhia Docas do Espírito Santo, Codesa, gerida por um grupo financeiro, é um feeder-port, sem linhas de longo curso e com uma fantástica receita de tarifa aquaviária pelo trânsito de navios de grande porte atendendo terminais privados adjacentes. Ora, considerando que parte preponderante de suas receitas reflete o desempenho comercial de outros terminais sobre seus ativos, há uma minimização significativa do risco do negócio.
Contudo, não se pode deixar de considerar que os objetivos econômicos de um modelo Landlord Port se contrapõem ao foco financeiro de um porto privado (Private Service Port). Enquanto este visa o retorno de curto prazo, auferindo lucros para a distribuição de dividendos, aquele, por ter o foco também econômico e não apenas financeiro, não visa apenas ao consumo à curto prazo, pois o objetivo é desenvolver a economia atendendo inclusive operações que dão prejuízo ou são menos lucrativas em relação a outras operações, como por exemplo, a de roll-on roll-off e a de uma estação de passageiros. O foco de uma autoridade portuária pública é apoiar a implantação de indústrias que serão servidas pela sua atividade operacional, gerando empregos e outros negócios que geram riqueza para a sociedade.
A autoridade portuária pública, portanto, investe antecipando a demanda, enquanto uma autoridade portuária privada investe para responder a demanda, tendo, portanto, a primeira um foco econômico, enquanto a segunda, um foco no resultado financeiro, reduzindo sua capacidade de crescimento devido à redução dos lucros acumulados, onde grande parte é posta para a distribuição de dividendos, reduzindo a capacidade de investimentos para gerar mais valor econômico a longo prazo.
Conclui-se, portanto, que o modelo Landlord Port, adequadamente implantado, conforme a experiência internacional, estimula naturalmente o mercado e amplia os investimentos privados no setor, posto que se alinha estrategicamente tanto ao interesse público quanto ao privado, planejando e promovendo atividades econômicas e operações logísticas, vinculadas às suas infraestruturas portuárias em base regional, seguindo um planejamento nacional.
Uma melhoria abrangente da governança portuária, baseada na implantação de fato do modelo Landlord Port no Brasil, com a participação na gestão dos seus principais stackeholders, como União, estados, municípios, setor empresarial, profissionais do setor e autoridade marítima, parece bem mais adequada às características nacionais de necessidade de desenvolvimento socioeconômico, do que o modelo Private Service Port, focado preponderantemente na valorização financeira dos ativos portuários.