quinta-feira, 19 de dezembro de 2024
Dolar Com.
Euro Com.
Libra Com.
Yuan Com.
Opinião

Artigos

Luiz Dias Guimarães

Clique para ver mais

Articulista

Civilização pet

A vida é uma passagem pela casa de alguém e que, por mera ilusão, consideramos nossa.

Hóspedes cuja educação deveria fazer com que a deixássemos limpa ao partir. Mas estamos criando monturos de lixo que inventamos para o deleite de uma vida fugaz.

Nos últimos 15 anos o aquecimento do sistema climático dobrou, ameaçando vivermos – quem ainda for hóspede – o antônimo da Era do Gelo. Este, por sinal, que funciona como refrigerador refrescando o mar e refletindo para longe os raios do Sol, está derretendo em dimensões assustadoras. Volta e meia imensos blocos se soltam e começam uma longa e derretida partida das calotas polares.

As tragédias do tempo, como recentemente no Litoral Paulista, quadruplicaram. E o nível do mar, aquecido cada vez mais, ameaça as espécies marinhas e as cidades que vivem à beira das ondas marinhas. Dois terços das cidades saboreiam a maresia.

O que me intriga mais são nossas invenções. Não nos contentamos com a vida. Buscamos a salvação da ciência para que sejamos hóspedes mais longevos, mas buscamos conforto que paradoxalmente ameaça a própria vida.

Há apenas 30 anos fomos surpreendidos no mercado com garrafas pet, não retornáveis. Quando jovem, as embalagens eram outras. O leiteiro deixava à porta garrafas de vidro com leite fresco. O padeiro ensacava com papel os pãezinhos quentes e o açougueiro embrulhava a carne em jornais.

Sim, foi exatamente em 1993 que o Brasil descobriu a garrafa pet. O mundo, um pouco antes, na corrida alucinante de norte-americanos e ingleses para  desenvolverem o plástico. E no embalo dos Mclanches, os refrigerantes se expandiram numa ampla ação de marketing que não poupou o que mais necessitamos: a água que bebemos. Um verdadeiro lobby fez-nos acreditar que só a água envasada nos garantiria saúde. E começou a tragédia.

Não somos japoneses que recolhem seus dejetos para descartá-los adequadamente. Nem nós, nem tampouco outros tantos mundo afora. E o que vemos hoje é a formação de novos territórios. Ilhas-sintéticas. Aglomerados de garrafas pet não só à beira dos manguezais, mas formando quase novos continentes.

No Pacífico Norte, especificamente entre a Califórnia e o Havaí, formou-se um autêntico território pet. São 1,6 milhão de quilômetros quadrados no oceano totalmente cobertos por pets.

É a maneira que vimos varrendo a sujeira por debaixo do tapete. Sem falar que muitas embalagens são exportadas para a Índia, distante da boa vida de Manhatan. Estou falando de quase 80 mil toneladas. Numa área maior que o estado do Amazonas, ou três vezes a França.

A novidade é que a natureza se transforma. Algumas espécies animais que vivem em áreas costeiras estão criando colônias e se adaptando a esse novo continente. Temo por suas vidas, intoxicadas inevitavelmente. Temo por todo o plantel marinho, que nos alimenta sem que saibamos o que trazem em suas entranhas. Afinal, microplásticos atraem elementos que podem nos levar à morte.

Esse descarte é evidência da ineficiente política de reciclagem, afinal as malditas pets são 100 por cento recicláveis. Só no Brasil, cerca de 500 empresas de reciclagem empregam 11.500 trabalhadores e faturam R$ 1,22 bilhão por ano. Estão, na grande maioria, na região Sudeste, e só conseguem reciclar 50 por cento das garrafas.

Cabe ao poder público recolher e reciclar mais em parceria com as empresas e educar-nos a não jogar por aí as garrafas. Cabe ao governo rever a legislação que permite o envasamento de água e refri nas pets. Cabe também a ele obrigar as concessionárias a garantirem a qualidade da água nas torneiras.

É certo que, em muitos lugares, a água torneiral não é potável. Mas em outros, podemos beber fazendo conchinha! Muitas águas vendidas em garrafas pet são retiradas nas torneiras, essa é a verdade.

Em capitais europeias, a água que nos servem à mesa dos restaurantes é da torneira. Não precisamos pagar por ela. Agora surgem também embalagens de papelão, biodegradáveis, no que parece uma boa solução.

Ah, saudade da garrafa de vidro! Sabe, aquela que trocávamos na compra de novo produto, num tempo em que fartávamo-nos na casa que nos hospeda, ao sabor de um bom vinho ou uma Perrier na garrafa de vidro.

Compartilhe:
TAGS Era do Gelo litoral paulista sistema climático tragédias do tempo

Leia também