A devassa do Eu
Você está nu na esquina. Faz o que bem quer e todos verão as entranhas dos seus pensamentos. O século XX trouxe a chance de telegrafar o amor ou a guerra, depois declarar de viva voz. E a liberdade de expressão se tornou cláusula pétrea da democracia. Mas agora, no XXI, você está nu.
Discute-se até onde devemos controlar as redes sociais. Li um argumento idiota de que se for para punir uma rede por algo dito, tem que punir também a companhia telefônica ou o provedor do e-mail.
A comunicação individualizada não se espalha para o mundo. É um papo de botequim ou uma confidência entre lençóis. Por mais que nos incomodem o telemarketing e o spam.
Liberdade de expressão é a voz do Eu perante o mundo. Vale na arte e na ideologia. Mas não vale na formação dos nossos rebentos. E por isso estamos gerando seres menores.
É certo que a verdade é sempre uma versão. Mas a mentira é uma verdade. Fake news é crime, não liberdade de expressão. O que se deve questionar hoje não é a diversidade de opinião. É o que banalizamos para nossas crianças.
Está em xeque, porém, algo muito maior ainda: você. Lamento dizer, mas você está nu. E não porque queira se banhar ou amar, mas porque está absolutamente devassado na avenida do mundo.
As leis de proteção de dados são boa intenção. Mas não valem para os hackers, as financeiras e as plataformas de busca. O que você pesquisa e a operação financeira que você faz viram domínio público no mercado da informação. É como se cada ação sua lhe tirasse uma roupa. E não bastasse esse mundo nebuloso e assustador, ainda vem o Estado controlar o pix que você faz para o Leão te devorar.
Você não pode mais simplesmente socorrer um irmão, presentear uma namorada ou receber uma gratificação por algo que fez. Só quem transita livremente são os operadores dos paraísos fiscais e os inescrupulosos gatunos do tráfico e do poder. Esses insistem em circular impunemente, por mais que os controlem, enquanto os mecanismos acabam pescando você na malha fina.
Busque no Google a oferta de um armário e você será por muito tempo assediado por lojas de departamento. A Inteligência Artificial, por meio do algoritmo, define você pelo que deseja consumir.
Agora cientistas revelam haver desenvolvido um mecanismo que permite que se descubra o que pensou aquele que não consegue falar. Ferramenta útil em alguns casos da neurociência. Mas escancara uma janela que talvez nem os videntes Orwell e Huxley tenham imaginado.
Essa tecnologia poderá fazer lerem nossos pensamentos. Quando soube disso até dei risada imaginando ler no Face, reduto da fofoca, que alguém está desejando a vizinha.
A prosperar essa inovação, como os chatGPTs da vida, será simplesmente a morte do ser privado. O que possuímos de verdade nesta existência são o batimento do coração e o pensamento, território privado que nos faz sonhar, desejar e decidir. É isso que nos motiva e anima em meio às agruras da vida.
Imagino essa ferramenta nas mãos da concorrência. E pior, na internet. Mais do que assassinatos em massa dos vizinhos, estaremos vendo a morte de algo que foi milagrosamente criado: cada um de nós, com sua singularidade, sua fé, seu querer e pensamentos nem sempre elogiáveis, talvez até condenáveis na redoma da íntima individualidade.
Não somos perfeitos, mas somos nós, cada um com uma porção de virtudes e imperfeições. Simplesmente aquilo que orgulhosamente podíamos chamar de Eu.