Negociado x Legislado
Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e coordenador científico do InfraJur, do Brasil Export
Recentemente fora publicado acórdão do leading case cujo julgamento, ocorrido em 02.06.2022, fixou por unanimidade de votos a tese referente ao Tema 1046 do Ementário de Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal (STF), reconhecendo a “prevalência do negociado sobre o legislado”, nos seguintes termos:
“São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis.”.
Na análise do processo, o Excelso STF deu provimento, por maioria de votos, ao recurso extraordinário com agravo em que se discutiu, à luz dos arts. 5º, inciso II, LV e XXXV; e 7º, incisos XIII e XXVI, da Constituição Federal, a manutenção de norma coletiva de trabalho que restringiu direito trabalhista, no caso, a supressão do pagamento de horas in itinere, com base em previsão em instrumento coletivo da categoria, que era anterior à reforma trabalhista.
Muito acertada, a decisão do Supremo reforçou a importância da negociação coletiva como uma relevante ferramenta de conciliação de interesses na esfera trabalhista, principalmente em cenários e setores que não possuem respaldo da legislação vigente ou que apresentam peculiaridades, como o setor portuário.
Neste ínterim, vale reforçar que muitas das controvérsias anteriormente sumuladas pelo Tribunal Superior do Trabalho foram tratadas na reforma trabalhista, em 2017. Em seu voto, por exemplo, o exmo. ministro Gilmar Mendes destacou que a Lei 13.467/2017 acrescentou à Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) dois dispositivos que definiram, de forma positiva e negativa, os direitos passíveis de negociação coletiva, sendo o artigo 611-A, que prevê a prevalência da convenção coletiva e do acordo coletivo de trabalho sobre a lei, e o artigo 611-B da CLT, que lista as matérias que não podem ser objeto de transação.
É certo que a Constituição Federal de 1988, em diversos incisos do art. 7º, prestigiou a autonomia coletiva da vontade e a autocomposição dos conflitos trabalhistas, consubstanciada nos acordos e convenções coletivas, garantindo, de forma enfática, o direito à negociação. O mesmo acontece com as legislações infraconstitucionais.
No âmbito portuário, por exemplo, vale mencionar a previsão trazida pela Lei 12.815/2013, que dispõe, em seu art. 43, as condições que são passíveis de negociação coletiva, como a remuneração, a definição das funções, a composição dos ternos e a multifuncionalidade. Isso demonstra a intenção do legislador em privilegiar a autonomia e autocomposição dos entes que participam das negociações neste setor.
Vale destacar, contudo, que mesmo com a fixação da tese pelo STF, a matéria ainda depende de maturação jurisprudencial pelos tribunais e varas de origem, observando as diretrizes constantes do voto do relator. Neste sentido, o julgador não poderá analisar legislação de forma isolada, devendo considerar todo o ordenamento jurídico na verificação dos temas que prevalecerão sobre as leis em uma negociação coletiva.
Para tanto, o relator min. Gilmar Mendes estabeleceu em seu voto três premissas básicas para revisão judicial de normas coletivas, que deverão ser observadas pela Justiça do Trabalho: (i) princípio da equivalência entre negociantes; (ii) teoria do conglobamento na apreciação das normas coletivas; e (iii) disponibilidade ampla dos direitos trabalhistas em normas coletivas, salvo direitos absolutamente indisponíveis.
A primeira premissa diz respeito à aplicação do princípio da equivalência entre os agentes sociais, sindicato profissional e empregador ou sindicato econômico, reconhecendo a simetria que existe entre ambas as partes, afastando a crença que a negociação coletiva gera vantagens apenas aos empregadores.
No direito coletivo do trabalho, não se justifica a aplicação do princípio da proteção, típico do direito individual, onde existe assimetria entre trabalhador e empregador, em face da hipossuficiência do primeiro.
A segunda premissa diz respeito à aplicação da teoria do conglobamento na apreciação de um instrumento coletivo de trabalho, uma vez que este contempla concessões mútuas, em linhas gerais, com previsão de vantagens e desvantagens às partes.
Segundo esta teoria, havendo conflito entre o que foi estabelecido por negociação coletiva e a lei, deverá prevalecer o que for mais favorável aos empregados, no seu conjunto ou em sua totalidade, não podendo existir fracionamento ou necessidade de dissecação de compensações individuais no texto, ou seja, “independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias”.
Por derradeiro, o ministro Gilmar Mendes defendeu a disponibilidade ampla dos direitos trabalhistas por meio da negociação coletiva, respeitado o patamar mínimo civilizatório, constando da tese a expressão “direitos absolutamente indisponíveis”. Neste sentido, fora privilegiado o princípio da intervenção mínima na autonomia coletiva privada.
Referido princípio é consagrado na Reforma Trabalhista, de forma expressa no art. 8º, § 3º, da CLT, de modo a guiar o aplicador do direito, em especial a Justiça do Trabalho, quando da análise dos acordos e convenções coletivas de trabalho, com uma nova lógica, visando garantir maior liberdade de negociação, transferindo o protagonismo aos atores sociais envolvidos, sem intervenção ou interferência do Estado.
Com efeito, a ideia do princípio da intervenção mínima é possibilitar à categoria profissional, por meio do seu sindicato representante, estabelecer as condições de trabalho aplicáveis à atividade, uma vez que este ente é quem detém os melhores elementos para avaliar eventuais vantagens e desvantagens da negociação coletiva.
O sistema brasileiro de autonomia privada coletiva é o de normatização privatística subordinada, ou seja, atribui aos atores sociais a criação de normas gerais e abstratas, por meio da negociação coletiva, condicionada a sua validade apenas ao preenchimento dos elementos de validade do negócio jurídico (CLT, Art. 8º. § 3o ) e à observância das matérias excluídas da possibilidade de negociação pela norma heterônoma estatal, concessum dicitur quidquid expresse prohibitum non reperitur, ou seja, tudo o que não é expressamente proibido é dito permitido, respeitando-se as normas jurídicas de indisponibilidade absoluta.
Para o ministro Alexandre Ramos, do Tribunal Superior do Trabalho, “procurando dar maior objetividade ao conceito, devem ser entendidos como direitos absolutamente indisponíveis, à luz da sistemática já exposta, aqueles previstos (1) nas normas constitucionais fechadas e/ou proibitivas, (2) nas normas internacionais incorporadas ao direito brasileiro, desde que autoexecutáveis e (3) nas normas infraconstitucionais que expressamente afastam a negociação coletiva.”.
Neste sentido, analisando as recentes decisões proferidas pelo Tribunal Superior do Trabalho, é possível observar que os ministros estão alinhados com a tese fixada pelo STF. A exemplo, citamos a recentíssima decisão proferida nos autos nº RR-11439-30.2015.5.01.0551, que entendeu pela validade de norma coletiva que permitia a fixação de jornada acima de seis horas diárias em turnos ininterruptos de revezamento, em atividade insalubre, o que era permitido apenas mediante licença prévia das autoridades competentes em matéria de higiene do trabalho, por força do art. 60 da CLT.
Temos, portanto, que a tese fixada no Tema 1046 está alinhada com a Constituição e buscou dar segurança jurídica aos instrumentos coletivos, reconhecendo a negociação coletiva como a melhor e mais democrática forma de pacificação dos conflitos coletivos de trabalho e de arranjos setoriais de atividades econômicas e profissionais, reconhecendo o protagonismo das normas aos atores sociais envolvidos na negociação, favorecendo a autonomia das partes no estabelecimento das condições de trabalho e privilegiando o princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade.