Ou vai, ou vai!
Construir uma cidade do zero é o sonho de todo urbanista!
É uma chance para corrigir erros de outros projetos, considerar novas tendências relativas à mobilidade urbana, inovar nas soluções em todos os sentidos, inclusive do ir e vir, sem ter que desapropriar ou remanejar. Afinal, reformas e reurbanizações sempre têm um quê de imprevisibilidade, sobretudo porque nem sempre se tem total visibilidade do efetivamente existente (redes subterrâneas de utilidades, etc.)
Agora, imaginem construir um túnel subaquático – obra inédita no Brasil – interligando duas cidades com acessos por áreas já urbanizadas, em alguns casos, densamente urbanizadas. É um senhor desafio!
Seja o caso da ligação entre as margens do canal que serve de acesso ao complexo portuário que envolve Santos, Guarujá e Cubatão. Bem, para começar, esse canal tem duas denominações: Canal do Estuário e Canal de Piaçaguera. O primeiro dá acesso aos terminais públicos do Porto Organizado de Santos, e aos terminais de uso privado (TUPs) da Saipem, Dow Brasil, Cutrale, DP World, na margem esquerda; e o segundo é o caminho para chegar aos TUPs da VLi (Tiplam) e Usiminas.
Nem todos os habitantes da Região Metropolitana da Baixada Santista sabem, mas Santos tem uma porção insular – a mais densamente habitada – e uma continental, que fica na outra margem dos canais do Estuário e de Piaçaguera. Nessa porção continental, estão localizados: a Ilha Barnabé, com seus terminais públicos de granéis líquidos químicos, e os TUPs da DP World, da VLi e parte do da Usiminas.
Pois é, para interligar essas duas porções de território santista, por via terrestre, é preciso transitar por Cubatão!
Isso não era problema até 1º de janeiro de 1949, pois, até então, Cubatão era território anexado a Santos. Mesmo assim, para ir de Santos-Insular a Santos-Continental e Guarujá, por via terrestre, são necessários cerca de 45 minutos.
A alternativa entre esses dois municípios é o transporte por balsas ou barcas, sujeito a intempéries, neblina, eventos climáticos extremos (ressacas e tempestades, cada vez mais intensas e frequentes) e ao tráfego de embarcações portuárias, incluindo esperas que podem ultrapassar uma hora, ou interrupções por tempo indeterminado. Isso sem falar em colisões de navios com balsas e a infraestrutura de seus terminais, que são raras, é fato, mas sempre geram problemas que normalmente levam meses para serem solucionados.
Não à toa, há quase 100 anos se estuda a ligação seca entre as margens do Canal do Estuário. Ao que consta, a primeira proposta é de 1927!
Mas foi o engenheiro-arquiteto Francisco Prestes Maia – politécnico que também foi prefeito da capital paulista por vários anos – quem produziu um estudo mais aprofundado sobre o tema, no final dos anos de 1940: o Plano Regional de Santos, publicado em 1950.
Nele, Prestes Maia não propôs uma, mas três ligações secas entre as margens, além de outras soluções viárias para Santos e Guarujá. O sistema de túneis Rubens Ferreira Martins foi uma das poucas sugestões efetivamente implantadas.
Posteriormente, uma série de outras propostas, promessas e maquetes foram apresentadas e até “inauguradas”, quase sempre pontes apresentadas como “cartões postais”, algumas bastante temerárias para os usuários, outras inconsequentes, por não considerar o potencial de evolução do porte das embarcações que acessam o principal complexo portuário do País, que já o era desde meados do século XIX e continua a se expandir.
Uma das ligações propostas por Prestes Maia era uma ponte móvel, com localização intermediária. Considerando o tempo de operação, o vão previsto, o porte das embarcações e a quantidade de manobras diariamente realizadas pela Praticagem do Estado de São Paulo, essa obra já teria sido demolida há décadas!
Os projetos foram se sucedendo, com espirais hipnóticas, pontes estaiadas ou em arcos, túneis escavados por tuneladoras inexistentes no País… Até que no início da década de 2010, o Governo do Estado de São Paulo resolveu estudar novamente a ligação seca, retomando uma ideia que já havia sido cogitada em 1927 e um estudo feito pela empresa Figueiredo Ferraz para a, então, Codesp: um túnel subaquático, obra inédita no Brasil. A localização seria aproximadamente a mesma
O projeto da ponte estaiada, feito na gestão anterior, seria na região da Ponta da Praia e, além de extensos viadutos de acesso, em ambos os lados, previa a execução de suas fundações dentro do Canal do Estuário.
Na época, um evento na Associação de Engenheiros e Arquitetos de Santos reuniu especialistas em pontes e túneis para discutir qual seria a melhor solução. Afinal, já se discutia o aprofundamento do Canal do Estuário para -17 m e o “Linhão de Itatinga” já estava prejudicando o acesso de embarcações aos terminais mais interiores do Porto.
Tendo acompanhado o debate, não foi só a minha percepção a de que a solução via túnel era a mais adequada, considerando cenários futuros. E é assim que uma obra desse porte e valor deve ser pensada, ainda mais quando envolve um equipamento logístico da importância do Porto de Santos.
O curioso é que o responsável pelo estudo alertou que um túnel seria inviável, em função do solo resistente estar a mais de 50 m de profundidade, ignorando que obras já executadas no exterior (Dinamarca-Suécia e Hong Kong, por exemplo) utilizaram tecnologia que permitiu uma solução não tão profunda.
Eu já conhecia esse tipo de solução, por ter convidado um engenheiro da Codesp para palestrar sobre o tema, num evento acadêmico que coordenei, em 2001. Por considerá-la extremamente interessante, propus e orientei um Trabalho de Conclusão de Curso de Engenharia Civil sobre o tema.
Como já informado, a solução ponte estaiada na Ponta da Praia foi descartada, e o Governo do Estado de São Paulo, por meio da Dersa, promoveu o Projeto Prestes Maia, em homenagem ao dito cujo. O estudo avaliou várias possíveis ligações entre as margens do canal, concluindo que a mais viável – mas não a única – era a de localização intermediária, aproximadamente no mesmo local da ponte móvel prevista pelo dito cujo, em 1950, e pela Figueiredo Ferraz, no final da década de 1990.
Mais curiosamente ainda, o responsável pela coordenação dos estudos foi o mesmo da ponte estaiada, e, não sei se por ter sido alertado, ou por ter recebido nova determinação, a solução adotada era em túnel subaquático, nos moldes dos exemplos relacionados anteriormente, em módulos.
O projeto conceitual da Dersa evoluiu até a obtenção da Licença Prévia (LP), apesar de dificuldades em convencer a Codesp e a Capitania dos Portos de que seria necessário demolir parte do recém-concluído “Cais da Marinha”. A quantidade de desapropriações necessárias, em Santos e Guarujá, gerou reação negativa da população local, e preocupações dos órgãos de trânsito dos municípios, durante e após a execução das obras. Para piorar, a expectativa do Governo do Estado era contar com aporte do Governo Federal para realizar a obra, o que não ocorreu, em função da crise econômica e política ocorrida na época.
Sim, a obra (Capex) seria executada com recursos públicos, o que fazia sentido na época, pois, ao que consta, o estudo feito para a Codesp já apontara que, caso a tarifa de pedágio fosse similar à praticada no Sistema Anchieta-Imigrantes – considerada a mais cara do País -, mesmo assim não haveria interesse da iniciativa privada, pois o retorno do investimento levaria décadas, sem falar nos custos de operação (Opex) e no lucro.
Como na música “Espelho”, de João Nogueira: “Foi mais uma vontade que ficou pra trás”.
Então, em 2019, a nova diretoria da Codesp, que posteriormente passou a ser identificada como Autoridade Portuária de Santos – ou, como nome de fantasia, Santos Port Authority -, retomou a proposta de túnel da Dersa, propondo alguns ajustes.
Nessa mesma época, o Governo do Estado adotou uma proposta de traçado de ponte feita pela Ecovias no final da década de 2000, com alterações. Em vez de uma estrutura em arcos, uma ponte estaiada, que também poderia ser pênsil, com maior gabarito aéreo e vão central. Essa solução, a exemplo da proposta feita para a Ponta da Praia, também implicava em extensos viadutos de acesso e riscos à navegação, pois também previa que suas fundações seriam feitas no interior do canal.
O problema nem tanto era o risco de uma colisão de embarcação com os pilares – para isso, foram previstas estruturas de “sacrifício”, para evitar colisão direta -, mas o afundamento de uma embarcação em razão de danos sofridos pelo choque. Caso tal ocorresse, o acesso aos terminais à montante seria prejudicado, afetando as operações de terminais públicos e privados de extrema relevância.
Houve uma intensa disputa entre os governos Federal e Estadual, que durou até o fim dos mandatos políticos envolvidos.
Antes disso, a Autoridade Portuária de Santos promoveu chamamento público, com o objetivo de obter estudos conceituais relativos ao túnel subaquático, os quais foram recebidos, porém, sem evolução posterior.
Com novas administrações assumindo os governos Federal e Estadual, tanto o ministro de Portos e Aeroportos, como o governador do Estado afirmaram a intenção de realizar a obra, priorizando-a. Boa expectativa!
Com esse intento, a Autoridade Portuária conclamou as prefeituras de Santos e Guarujá, entidades do setor e sociedade civil a participarem de um grupo de trabalho destinado a resolver problemas já identificados no projeto da Dersa, e não adequadamente solucionados no estudo doado, resultante do chamamento público.
Aprovisionar recursos para a construção do túnel era um dos compromissos previstos no processo de desestatização, descartado com a mudança de diretrizes da nova gestão do Governo Federal. Assim, a proposta da Autoridade Portuária, no âmbito do custeio da obra, era de prover parte dos recursos por meio de receita própria, e incluir o restante num futuro “pacote” de investimentos federais – reedição do antigo PAC -, que provavelmente será anunciado em 2 de julho.
As soluções viárias encontradas reduziram substancialmente as desapropriações necessárias e os impactos em vias locais, atenuando as impedâncias anteriormente existentes. A proposta conceitual considerada a mais promissora pelo grupo de trabalho foi apresentada em audiência pública realizada pela Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados, em Brasília, no dia 13 de junho. Foi bem recebida pelos congressistas.
Mais uma vez, o Governo do Estado reiterou seu interesse no túnel.
Já a Autoridade Portuária pontuou que o túnel é parte da solução, no que se refere ao complexo portuário, ressaltando a importância de uma nova ligação entre o Planalto e a Região Metropolitana da Baixada Santista. Essa ligação caberia ao Governo Estadual.
Houve certa discussão sobre qual seria o melhor modelo de financiamento dessas obras, se por execução direta, com posterior concessão – defendida pela Autoridade Portuária, por considerá-la mais rápida – ou mediante uma PPP – proposta do Governo Estadual. A PPP pode ser administrativa, com a contratada arcando com a construção do equipamento após o quê passa a ser remunerada pelo Governo; ou patrocinada, quando os valores pagos pelos usuários do serviço não são suficientes para dar viabilidade ao projeto.
Enfim, a engenharia financeira será definida em função do projeto-executivo, que também deverá envolver a efetiva e ampla análise do impacto dos fluxos e movimentos nas malhas viárias urbanas, mitigando-os.
Mas a questão do novo acesso entre o Planalto e a Baixada merece uma menção especial. O representante do Governo do Estado mencionou que estão sendo estudadas duas alternativas: uma nova pista no âmbito da concessão da Ecovias – o que provavelmente resultará em nova extensão do prazo de concessão -, ou a chamada “Linha Verde”, estudo iniciado na gestão anterior, que prevê uma ligação entre Suzano, a partir do Rodoanel, e a Área Continental de Santos, conectando com a Rodovia Dom Domenico Rangoni.
Pois bem, o ideal é que ambas sejam concretizadas, já sabendo que precisarão passar pela “via crucis” do licenciamento ambiental, por mais sustentáveis e imprescindíveis que sejam.
No caso de uma nova pista no âmbito da concessão da Ecovias, é preciso atenção para evitar que os gargalos atualmente existentes sejam agravados. As importantes obras feitas recentemente podem não ser suficientes para absorver o incremento de demanda, sobretudo em períodos de safra, concomitantes com feriados prolongados.
Nesse sentido, a “Linha Verde” seria mais interessante, pois o fato de absorver parte do volume de tráfego do SAI tende a melhorar o nível de serviço desse sistema. E considerando a previsão de incremento na movimentação de cargas destinadas/oriundas do complexo portuário, eventuais perdas do SAI seriam progressivamente recuperadas.
A “Linha Verde” também favoreceria a implantação de atividades logísticas e industriais nas áreas continentais de Santos e Guarujá.
A Rodovia Domenico Rangoni precisaria ter sua capacidade ampliada a partir da conexão com a “Linha Verde”, e não em toda a sua extensão.
O representante do Governo do Estado asseverou que as duas alternativas estão sendo estudadas, e que será escolhida a melhor.
O custo inicialmente estimado para o túnel assustou alguns, afinal R$ 5,85 bilhões não é “bolinho”!
No entanto, um complexo portuário que gera cerca de R$ 200 bilhões por ano em tributos e todo o impacto positivo que a execução da ligação seca representará – em termos de segurança ao tráfego de embarcações no maior porto do Hemisfério Sul e em mobilidade regional – mais do que justificam essa obra, ansiosamente aguardada há quase um século!
Assim sendo, qualquer que seja a eventual divergência, seja ela econômica ou política, que seja superada e transformada em convergência, no melhor interesse da relação porto-cidade e do desenvolvimento sustentado do Brasil!