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Adilson Luiz Gonçalves

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Para não perder o bonde da história

Santos sempre foi pioneira ou protagonista em múltiplos aspectos.

Há alguma controvérsia sobre datas, mas consta que a primeira linha para transporte de passageiros por bonde, tracionado por burros, entrou em operação em 1875, ligando Santos a São Vicente. Essa mesma linha serviu para a estreia dos bondes elétricos em 1909, já sob responsabilidade da empresa inglesa “The City of Santos Improvements Company” (1904-1951).

Havia veículos abertos, onde passageiros viajavam sentados ou nos estribos laterais, e fechados, conhecidos como “camarões”, ambos autopropelidos, mas também havia os veículos rebocados, todos basicamente de concepção escocesa.

Os trilhos foram se espalhando pela Ilha de São Vicente, majoritariamente em Santos, que passou a ter um dos melhores sistemas de transporte público do Brasil, numa época em que ninguém falava sobre ecologia ou energia limpa, com as Usinas Henry Borden funcionando a plena potência.

O bonde passou a fazer parte da história de Santos, como das principais cidades brasileiras. Também foi incorporado em expressões populares, ainda hoje usadas, tais como: “pegar o bonde andando”, com a extensão “e querer sentar na janelinha”, virou sinônimo de entrar numa conversa em andamento e dar opinião sem saber do que se tratava; ou “tomar o bonde errado”, que equivale a um engano em decisões tomadas.

Meu pai, eletrotécnico formado no curso ginasial do Escolástica Rosa, muito jovem começou a trabalhar na “Companhia City”, enrolando motores de bondes, que passaram a ser mantidos e fabricados nas dependências da empresa.

Em 1951, o transporte público foi municipalizado, tendo sido criada a autarquia Serviço Municipal de Transportes Coletivos  (SMTC).

Meu pai saía da sede da empresa, na Vila Mathias, para almoçar na casa de meus avós, na Av. Pedro Lessa, que, na época, ficava no Bairro do Macuco (agora fica no Bairro Aparecida). Meu pai saltava do bonde, entrava e comia, enquanto o veículo contornava a Praça Nossa Senhora Aparecida: sincronia perfeita.

Foi num baile do SMTC Club que ele conheceu minha mãe, cujos irmãos também trabalhavam na empresa, assim como meu avô materno, que era fiscal de bonde – encontramos com ele algumas vezes, o que era sempre uma agradável surpresa.

Eu gostava particularmente dos bondes abertos, com seus cobradores percorrendo habilmente os estribos, com notas cuidadosamente dobradas entre os dedos, usando um apito para avisar o motorneiro para prosseguir a viagem.

Até por volta dos anos de 1960, havia poucos carros em Santos. E a maioria das ruas era pavimentada com paralelepípedos de pedra. Os táxis eram veículos antigos, pesados. Em dias de chuva, as ruas, sobretudo onde havia trilhos, viravam um “sabão”, o que potencializava riscos aos motoristas.

Que eu me lembre, os ônibus a diesel começaram a compartilhar as ruas com os bondes, de forma mais intensa, a partir da década de 1960, tempo do “papa-filas”. Também nessa década chegaram os trólebus italianos da FIAT (1963), descarregados no Porto de Santos. Eu adorava viajar de pé, perto do motorista, fascinado com as luzes do painel, que pareciam coisa da série Jornada nas Estrelas original!

Meu pai também acompanhou a implantação da rede trólebus, com suas subestações e linhas áreas de dois cabos elétricos. A linha aérea de bonde tinha apenas um cabo, com o circuito elétrico fechando com os trilhos. Havia menos poluição visual, também.

Na “Semana da Criança”, os bondes eram disponibilizados gratuitamente aos alunos de escolas municipais e estaduais para visitas ao Orquidário, ao Aquário e ao Corpo de Bombeiros, que ficava no “Castelinho”, na Praça Tenente Mauro Batista de Miranda. Era uma festa que muitos devem ter guardado na memória!

Alguns acidentes e, obviamente, a pressão da indústria automobilística levaram à extinção do serviço de bondes elétricos, em 1971. Na época, o rodoviarismo tinha “a cara do desenvolvimento”! E esses interesses predominaram.

Perdão aos animais pela analogia, mas parece que os burros deixaram de puxar os bondes para os pegarem andando e sentarem na janelinha, tomando decisões equivocadas.

De certa forma, também devem ter sido influenciados por outra expressão, talvez a mais equivocada de todas: “comprar bonde”, que significava fazer um mau negócio ou ter sido enganado.

Restaram apenas os abrigos nos canteiros centrais de avenidas, como os da esquina da Av. Ana Costa com a Av. Francisco Glicério, e o da Av. Conselheiro Nébias com a Av. Vicente de Carvalho.

Houve algumas tentativas de retomar esse tipo de transporte, primeiro na orla, nos anos de 1980, até se consolidar na “Linha Turística” que circula do Centro Histórico e na criação do “Museu Vivo Internacional de Bondes da América Latina”, com veículos de várias procedências, com destaque para o italiano e o japonês, que mostram como poderíamos ter evoluído dos exemplares de origem escocesa.

Precisamos chegar ao século 21 para que voltássemos a ter esse serviço, com o VLT.

É difícil implantar do zero, depois que praticamente todos os trilhos foram arrancados ou cobertos com concreto asfáltico.

Alguns dizem que é uma mudança cultural, quando deveria ser encarada como um resgate tardio de uma cultura que jamais deveria ter sido esquecida. Afinal, os bondes elétricos continuam a circular em larga escala em cidades do Hemisfério Norte, sobretudo na Europa, transitando sem sobressaltos em meio a carros, caminhões e pedestres. Às vezes, eles passam a centímetros de “parklets” de restaurantes e bares, sem maiores consequências que não o deslocamento de ar. É assim em Roma, Genebra e Amsterdam. E a expansão desse modo de transporte ocorre em várias cidades, seguindo a premissa de proporcionar transporte ambientalmente sustentado com qualidade, conforto e regularidade.

Os bondes, agora sob forma de VLT, assim como o transporte ferroviário, sofreram do mesmo “mal”, no Brasil: uma percepção estratégica errônea.

A Europa, destruída pela Segunda Guerra Mundial, apressou-se em recuperar e ampliar suas ferrovias e serviços de bondes urbanos, com ênfase em veículos elétricos.

Aqui, houve um abandono, seguido de um hiato histórico, que hoje torna tudo mais difícil de recuperar ou construir por conta de licenciamentos ambientais, burocracia estatal, lucros cessantes e ingerências externas, com interesses nem sempre claros. Além disso, como em toda a obra urbana, por mais que sejam elaborados planos de ataque que menos criem estorvo, vale a ditado segundo o qual “não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos”.

Assim, é preciso reformular conceitos e recuperar a cultura do transporte menos ambientalmente impactante, fomentando-o. Também é fundamental agilizar a execução dessas obras, para evitar que o prazo saia fora dos trilhos e para que não continuemos a “perder o bonde da História”.

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TAGS Ilha de São Vicente Improvements Company São Vicente Segunda Guerra Mundial

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