As cartas, os fatos e o tempo
Tenho saudade de Dora, professora aposentada que sobrevivia na estação Central do Brasil escrevendo cartas para analfabetos recém chegados. O filme de Walter Salles, protagonizado pela magistral Fernanda Montenegro, me veio à mente quando abri a caixa de e-mail e havia a oferta de um arquivo com 500 modelos de cartas e contratos.
A comunicação determina o rumo do tempo, positivamente ou não. A civilização evoluiu primeiro às custas de gestos, desenhos nas cavernas e grunhidos que começaram a ganhar significado.E era a fogueira que dava as novas aos mais distantes. Daí para a frente a sociedade se firmou às custas da transmissão oral e depois dos papiros. As decisões de César eram conhecidas pelo povo por meio da Acta Diurna, tosco mural que diariamente deixava em alvoroço a plebe.
O tempo sempre foi muito lento. Havia um lapso entre os fatos e seu conhecimento. Dom Pedro I poderia ter declarado a Independência muito antes. As más notícias da Corte portuguesa demoraram a chegar.Como a carta de Dona Leopoldina e José Bonifácio, o Patriarca, enviada a cavalo ao Imperador.
A luz do sol leva 8,3 minutos para nos clarear. A informação muito mais, dependente do galope e das condições dos mares. Até que surgiu o telégrafo e o telefone, pouco tempo atrás. Isso explica por que só se sabia das guerras dias depois, seu começo e o fim.
A informação sempre foi o bem mais precioso. Numa batalha entre França e Inglaterra o emergente financista Rothschild partiu de Londres num pequeno barco para acompanhar a guerra além do Canal da Mancha, instalando-se no alto de uma colina no continente. Findo o entrevero, retornou ao centro londrino e, cabisbaixo, recolheu-se em sua casa. A bolsa de valores, ainda incipiente, viveu a derrocada, deduzindo-se que os ingleses haviam perdido o embate.
No dia seguinte chegou o pelotão eufórico, festejando a vitória. Então a bolsa disparou e quando os financistas recém falidos cobraram a postura de Rothschild, este se isentou, alegando que nada havia dito, vítima que fora de intensa enxaqueca da viagem. Mas já havia mandado seus corretores arrematarem tantas ações na bacia das almas.
Vivi pessoalmente essa realidade do hiato do fato e o conhecimento na década de 70, quando da inauguração pelo Geisel da Usina de Promissão. À época não havia ‘ao vivo’. Éramos dezenas de jornalistas a bordo de um Electra que sambava em regresso a São Paulo diante de torrencial tempestade. Suávamos frio enquanto comentávamos que, se o avião caísse, simplesmente Promissão não teria sido inaugurada.
A evolução tecnológica trouxe incontestável evolução, acabando com esse hiato do fato e o tempo. Mas a informação que tinha dificuldade em se disseminar agora eclode como fogo inflamando os espíritos. A opinião tinha tempo para se depurar. Agora incendeia, alimentando o ódio e empurrando manadas para as praças sem ao menos haver convicção, mas apenas preconceitos.
Saudade das cartas de Dora, como das minhas também. Não de todas, pois cartas eram mensageiras de boas mas também más novas. No campo da amizade, Clarice Lispector e Fernando Sabino trocaram textos de profunda reflexão. E os poetas achavam as melhores palavras para declarar seu amor. O ódio eventual se esvaia ao virar tinta nas canetas de pena.
Os analfabetos, que recorriam a Dora no canto da estação, conseguiam avisar, ainda que com tempo tardio, que chegaram bem, estavam encantados com o Cristo Redentor. Mas já sentiam muita saudade.