Vida e morte do iceberg
“Tudo tem um fim e um começo. Aflige-nos esperar nove meses para um nascimento. Angustia-nos espreitar a morte ao mesmo tempo. Por isso me incomodo tanto com o belo A23a. Pois nada é tão gélido que não possa derreter diante de nós, sujeitos a, de alguma maneira, dependermos de seu humor e de sua ousadia”
Sabe os versos de que nenhum homem é uma ilha? Pois é, fazemos parte de um todo, inclusive dela, e dos icebergs. Dei-me conta de que estamos perdendo o mais majestoso iceberg, o A23a, que provavelmente você nem soubesse que existe. Não sabemos muita coisa mesmo.
Mas me impactou a notícia de que A23a está morrendo e procurei saber de sua vida como quem lê na necrologia e corre na internet para entender os detalhes. Ele é sim o mais esplendoroso dos icebergs. Tem 4 mil km quadrados, 300 metros de espessura e eleva-se a 30 metros do nível do mar. É plano, sem promontórios como quem não quer atingir o céu mas se orgulha de sua superfície que se impõe.
A23a viveu muito tempo em seu mundo glacial, na calota gélida da Antártida que já perdeu nas últimas décadas 5 mil km quadrados. Até que, em 1985, decidiu desgarrar-se e partir para o mundo. Os icebergs também têm suas vontades, ou suas predestinações. Viveu por muito como uma ilha soberana, vez que fundeada num lamaçal que o fez ser considerado uma ilha de gelo. Mas era pouco para ele. Talvez sonhasse se aventurar como outros, não tão grandiosos e soberbos como ele, mas era o que mais se destacava naquele universo.
A23a partiu então seguindo a rota da Península da Antártida, uma estrada no mar pelo qual caminham muitos icebergs no sentido horário, em direção à Geórgia do Sul, reduto britânico cuja opulenta história talvez inspire tantos outros blocos glaciais.
Fico imaginando o quanto os demais o admiravam tal sua formosura do tamanho de três cidades do Rio ou metade da Grande São Paulo. Mas agora A23a está morrendo. Evidência de que existe a morte também para icebergs. Assim como na natureza surgem novas vidas. O Mar Vermelho, palco hoje de tantos conflitos, parece abrir caminho pela Etiópia em meio a três placas tectônicas, que poderá um dia, que não veremos, dividir o continente africano.
Tudo tem um fim e um começo. Aflige-nos esperar nove meses para um nascimento. Angustia-nos espreitar a morte no mesmo tempo. Por isso me incomodo tanto com o belo A23a. Pois nada é tão gélido que não possa derreter diante de nós, sujeitos a, de alguma maneira, dependermos de seu humor e de sua ousadia.
À medida que navega em mares mais quentes, A23a começa um ciclo de transformação. Pequenos blocos despencam dele feito cachoeira e expõe suas crateras. Sim, ele também possui arcos e cavernas, buracos recônditos de sua intimidade,e que vêm à luz à medida da finitude da vida, quando na derradeira porta brotam mistérios e segredos.
O processo de degelo faz o que estava submerso, sufocado pelo poder do grande iceberg, aflorar e deglutir lentamente as bordas, acelerando a destruição do império.
Como tudo sempre tem uma consequência, o esquálido iceberg começa a liberar nutrientes minerais antes reclusos que beneficiam os plânctons e as baleias.
Os cientistas que acompanham essa triste jornada temem que A23a nos deixará em poucos meses. O desequilíbrio que provocamos em nosso planeta tem suas consequências fatais. E uma hipótese provável é que o vento, as correntes e o ar, menos gélidos, influenciem na temperatura da Europa.
Sim, decididamente, ao tempo em que lamento a prenunciada morte do A23a, vejo que definitivamente nenhum homem é uma ilha, tampouco um iceberg. O poder e sua exuberância se derretem um dia.