quinta-feira, 19 de dezembro de 2024
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Luiz Dias Guimarães

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O retrato do pássaro

Acordei impactado com a triste notícia das ovelhas. As madrugadas são sempre espantadas pelos clarins das boas e as más novas, parecendo que o futuro espera nos recuperarmos do insólito dia que se foi. Quatorze mil ovelhas e alguns bovinos agonizam nos porões da insensata guerra que impediu que seguissem de navio da Austrália para Israel pelo Mar Vermelho.

Essa triste história, porém, deixo para depois. Era véspera da inauguração dos estúdios da BE News TV, e não contendo a curiosidade, desbravei cabos, monitores e muita gente alucinada nos últimos detalhes. Até que me deparei com Fabrício, cujo semblante emanava um turbilhão de providências. Foi quando, enquanto decidia onde instalar a placa que registra o nome de Carlos Manente para os estúdios, me pediu: “Você tem a versão que o Manente fez do francês para a poesia do retrato do pássaro?”.

Foi o que bastou para eu esquecer as ovelhinhas e despencar na saudade. “Tenho sim”, respondi, certo de que encontraria horas mais tarde, numa caixa empoeirada de lembranças e rotos jornais, uma lauda amarelecida do Estado, em que Manente datilografara um dia sua versão do poema Para fazer o retrato de um pássaro, do francês Jacques Prévert. Esse era um dos preferidos do meu amigo-irmão, juntamente com Espera-me, do russo Constantin Semenov, e Cântico Negro, do português José Régio.

Logo entendi por que Fabrício me pediu o texto. Tudo a ver, pensei eu, já antevendo a referência que faria no dia seguinte ao explicar o motivo da homenagem à memória daquele meu professor e amigo sem tamanho, brilhante jornalista e sensível poeta. Fabrício, então jovem estudante e já atuante organizador de eventos, quando saía da faculdade à noite juntava-se a nós na mesa do Bar da Praia, para ouvir Manente, velho de guerra, como me referia a ele, discorrer sobre política, jornalismo e poesia.

Talvez você não o conheça, essa é uma memória santista. Mas certamente de alguma maneira esteve a ele ligado especialmente pelas matérias que dirigia no dominical Fantástico e depois no Jornal da Globo. Intransigente com a verdade e com os políticos, e rigoroso com a qualidade do trabalho, não era uma personalidade fácil. Alguns não gostavam dele, especialmente por suas broncas, mas todos admitiam seu irretocável talento na apuração do fato, na redação do ocorrido e na escolha de sua equipe. Como pioneiramente, na sala de meu escritório cedido prazerosamente, formou a primeira turma de jornalistas da TV Tribuna.

E por que o retrato do pássaro? Certamente Fabrício declamou o poema na prestigiada cerimônia de inauguração dos estúdios da BE News em Santos. Não cabe aqui reproduzi-lo. Mas Prévert dá a receita para se pintar um quadro de um pássaro, com todos os ingredientes para que esse pássaro venha a cantar! Uma receita universal do sucesso.

Somos todos artistas nesta insana e mágica vida. Mas para o pássaro cantar é preciso, sim, cuidar de todos os elementos do quadro, o verde da relva, a luz do sol, o frescor da relva… E muita precisão com os pincéis. Preciso também de muita imaginação e ousadia. É aí que penso no sucesso do quadro daquele mamute do jornalismo, pioneiro do telejornalismo de padrão no litoral paulista, que reservava suas noites para declamar e escrever poesias, especialmente depois que veio à sua pintura sua filha Luiza, sentido de sua vida ceifada prematuramente nas primeiras horas do novo milênio.

Fabrício lembrou bem do poema. Pela admiração que tinha pelo velho de guerra, mas também porque certamente o poema do pássaro sempre o inspirou. Fa – permitam-me a intimidade – desde cedo cozeu sua vida nos passos de Prévert. Visionário, incansável, ousado e desafiador, soube formar equipes e juntar-se às melhores cabeças de um é buliçoso mercado da infraestrutura portuária e logística nacional, porque acredita no talento deste País. E por pintar com acuidade e respeito, movendo o pincel com maestria, conclui cada vez mais o retrato de um pássaro chamado Brasil Export.

Talvez fosse um prenúncio quando, ainda pequeno, passeávamos aos domingos e sempre que nos deparávamos com bandeira do Brasil desfraldada, o pequeno menino euforicamente gritava “utah!”, “utah!”. Às vezes penso que Fabrício também é o pássaro. E canta!

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