Corpos e mentes ardentes
Nunca vou esquecer as tochas humanas que riscavam o escuro na Vila Socó. Oficialmente foram 93 corpos carbonizados. Mas nessas tragédias os números são sempre imprecisos. Especialmente quando se trata de cidadãos que pouco se sabia da existência no mundo.
Era verão de 84 e o calor adicional do incêndio inflamava mais os espíritos empatizados com a dor e o inesperado desfecho da vida. Eu estava lá. Não porque lá morasse com aquela gente, em cima de um extenso duto de gasolina. Mas porque, mal me deitara e fui despertado por um pesadelo real. Começava a madrugada mais trágica da minha vida, perambulando entre pinguelas em brasas, tentando dimensionar o impacto da insanidade pública no destino de centenas de pessoas à beira da rodovia que trazia, como ainda traz, o progresso do país pelo porto de Santos.
As horas eram consumidas em jatos d´água até que surgissem os primeiros raios de sol entre o cinza das nuvens escuras. Foi quando o capitão dos bombeiros chamou a mim e a outros repórteres para uma vistoria nas passarelas fumegantes. “Agora vem o pior”, ele alertou.
Demos uma dezena de passos naquele cortejo que antecipava lágrimas. O capitão estancou, apoiado com a cabeça despencada sobre um tosco resto de madeira, e soluçou. Que imagem surpreenderia a ponto de flagelar o sentimento daquele bravo capitão? Percorri o olhar sobre as estacas enegrecidas fincadas naquele solo de mangue. E um raio de sol clareou minha visão: muitas daquelas estacas eram corpos calcinados na fuga das labaredas loucas.
Vi mais adiante o que aparentava ser uma tora de carvão que expunha o branco dos ossos. Junto dessa tora um carvãozinho pequeno, ambos a míseros dois metros de um riacho, para onde tentaram se refugiar do fogo maldito.
Vi uma clareira onde, em círculo, dispunham os corpos. Vi pai e filha eufóricos por se encontrar não estendidos naquele clarão onde o comandante dos bombeiros era contido por, de tão desesperado, surrar com cinturão um idoso que para aplacar sua dar culpava aos gritos os soldados do fogo.
Era a crônica da tragédia anunciada essa vida sobre dutos de combustível, que naquele nefasto dia impregnou narinas e matou a felicidade. Nunca se espera tal infortúnio, mesmo diante de clamores e alertas.
Naquele tempo a Baixada Santista era assim. Lutávamos nas páginas de jornal contra a poluição de Cubatão que descascava as encostas da Serra do Mar e fazia chover ácido, além de gerar crianças com má-formação.
E no estuário, a ilha Barnabé, onde chegou a morar Braz Cubas, fundador do povoado de Santos, colecionava-se o perigo. Em uma noite, ao final de um debate com as autoridades ambientais, transmitido pelo rádio, deixei no ar uma pergunta: “Para quem os moradores devem ligar diante de um vazamento?”. Mal sabia que uma hora depois me depararia, de máscara, com o presidente da Cetesb, na rodovia que exalava amônia e ele, ao ver-me, exclamou: “Oh boca santa!”.
Os vazamentos de produtos químicos eram constantes naquela época. Até que se parou de brincar com a sorte e o pólo industrial de Cubatão deixou de ser o Vale da Morte. Barnabé também passou a se comportar melhor. O porto de Santos, porém, continuou convivendo com riscos em tambores esquecidos em armazéns ou transportados livremente pelas ruas da cidade.
Às vezes, apesar de todas as precauções, o pesadelo briga com a sorte. Como há poucos anos, quando o terminal da Ultracargo ficou em chamas. Como também nesta semana o depósito da Receita Federal virou cinzas após 60 horas de um fogo arredio.
Tenho a sensação de que nunca as labaredas foram tão presentes, não só em Santos. Esta semana, ainda, a bela Valencia viu derreter um edifício de 14 andares. Dá a sensação de que algo ou alguém anda muito irritado com os rumos da vida.
Por mais que se adotem precauções, existe o infortúnio que não se espera jamais, não há de se brincar com ele. Agora questiona-se a operação de um terminal de gás (GNL) no canal de acesso do porto de Santos. E só de ver uma foto do navio que transporta o produto afloram minhas tristes lembranças.
Há quem diga que o volume a ser transposto no estuário é várias vezes mais potente que o produto que um dia explodiu em Beirute, matando milhares de libaneses.
Mais sensato é manter o perigo distante das cidades. Não há risco, dirão alguns. Como um dia, na hoje esquecida Vila Socó, famílias sem opção fincaram palafitas sem acreditar no perigo do fantasmagórico fogo que numa bela noite calcinou vidas e sonhos.