A íris sem bigode
“Os organismos de proteção de dados pessoais estão intrigados e alguns buscam melhores explicações. A Espanha já proibiu liminarmente que a empresa continue fotografando a íris de seus cidadãos em troca de bitcoins até que se entendam as dimensões dessa ação que pode levar à exposição e controle cada vez maior do cidadão. Portugal deve seguir o mesmo caminho”
Saudade do tempo em que os olhos serviam para ver o mundo, se apaixonar por alguém e estabelecer íntimo amor, talvez derradeiro e por sorte infinito.
Saudade de quando meu sim era um consentimento, meu aperto de mão o fio do bigode, minha promessa o valor de uma honra. Hoje valho apenas um score, fui transformado em bitcoin, com meus olhos ao preço de míseras criptomoedas.
Por que digo isso? Mário Quintana escreveu que os verdadeiros poetas não leem outros poetas, mas sim os pequenos anúncios dos jornais. Não leio mais jornais, ao contrário de meus letrados cachorros, mas me fixo nos posts que não falam de guerra nem exibem a exuberância de quem quer parecer feliz. Detenho-me em notas digitais, pequenas notas que me despertam sentimentos e me intrigam, sem dar bola à esquerda ou à direita, como parece o mundo hoje se arrastando para os cantos. Só em 2024 terá escolhido 28 mandatários de todos os gostos e por vezes nebulosas totalidades.
Um post recorrente esta semana, que certamente passou despercebido no carrossel da fantasia, mostrou quem manda mesmo neste mundo novo, onde duas corporações, que se dizem fundos de investimentos, controlam todas as grandes empresas do mundo, octopus impessoais acima dos mandatários de plantão.
Lembra-me o filme Rede de Intrigas da década de 70, que eu fazia meus alunos assistirem no curso de jornalismo nem tanto pela trama enlouquecedora numa rede de televisão mas principalmente pelo desfecho que mostrava o planeta dominado e controlado por grandes corporações. Cada vez mais Orwell estava certo ao profetizar o Big Brother e agora se vê que esse irmão é privado.
Worldcoin é o nome da empresa que já espalhou seus tentáculos em 34 países, inclusive o Brasil. Surfando nas descobertas de seu fundador, Sam Altman, pai do ChatGPT, em troca de míseras criptomoedas – algo em torno de 500 reais -, já fotografou a íris de milhares de cidadãos. Só em Portugal, 300 mil lusitanos.
Orb, sua câmera que parece uma bola de boliche, escaneia a íris de cada voluntário, com a esperança de catalogar toda a humanidade. Para quê? Transformar cada um num ID. A íris é melhor que a impressão digital na sua individualidade. Essa nova biometria, diz a Worldcoin, é convertida em um código de identidade, o ID numérico, universalizando o que aqui a Receita Federal pretendeu com o CPF.
Os organismos de proteção de dados pessoais estão intrigados e alguns buscam melhores explicações. A Espanha já proibiu liminarmente que a empresa continue fotografando a íris de seus cidadãos em troca de bitcoins até que se entendam as dimensões dessa ação que pode levar à exposição e controle cada vez maior do cidadão. Portugal deve seguir o mesmo caminho.
Esse banco de ID pode monopolizar o meu ser nas mãos de terceiros privados, já não bastasse o quanto sou invadido na minha identidade financeira pelos órgãos oficiais. As fintechs, por sua vez, já controlam e manipulam meu gosto e meus desejos a cada clicar no ecrã.
Na verdade somos hoje cidadãos nus não imunes sequer à invasão dos pensamentos. Recentemente um grupo de cientistas conseguiu captar os pensamentos de pessoas com dificuldade de expressão, um feito terapêutico. É a porta para um dia devassarem minha alma. Está próximo o dia em que deixarei de me reconhecer como um “eu”. E aí não sobrarão nem as lembranças de um honroso fio do bigode.