Planejamento urbano-portuário
A Constituição prevê que cabe, à União, a definição de diretrizes urbanísticas, mas que, aos municípios, cabe a definição de planos diretores e legislações de uso e ocupação do solo.
Em 2015, a elaboração dos planos mestres dos portos públicos brasileiros era feita pelo LabTrans, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atualmente, essa função cabe à empresa Infra S.A., junção da Valec Engenharia, Construções e Ferrovias S/A com a Empresa de Planejamento e Logística (EPL).
O distanciamento geográfico restringia o deslocamento de equipes, o que ocorreu poucas vezes, incluindo as necessárias consultas aos municípios, operadores portuários, usuários do porto e à própria, então, Codesp (Companhia Docas do Estado de São Paulo).
Visitas técnicas ocorreram, reuniões foram feitas, revisões analíticas da minuta dos planos mestres foram encaminhadas à Codesp. Porém, o LabTrans não teria recebido esse material, o que gerou alguma celeuma. Ao tomar ciência do fato, o Tribunal de Contas da União (TCU) anunciou, num evento realizado nas instalações do Concais, no mesmo ano, que o Plano Mestre do Porto de Santos fosse revisto, para considerar as manifestações dos municípios e demais atores do setor portuário. Não foi, ao que consta, uma orientação para que fossem realizadas as convencionais audiências públicas, mas uma determinação para que houvesse consulta prévia aos entes públicos e privados pertinentes.
A Constituição prevê que cabe, à União, a definição de diretrizes urbanísticas, mas que, aos municípios, cabe a definição de planos diretores e legislações de uso e ocupação do solo.
Em 2022, versei sobre esse assunto num artigo de minha autoria, denominado: “Áreas de Porto Organizado no Brasil – Conflito Jurisdicional”, publicado na Revista de Direito e Negócios Internacionais da Maritime Law Academy. Resumidamente, ele analisa o tema com base na Constituição, no Estatuto da Cidade e na Lei Federal nº 12.815/2013.
Um dos exemplos de conflito jurisdicional se refere ao imbróglio que resultou na decisão monocrática – até hoje – do Supremo Tribunal Federal, relativa à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 316/2014. Essa ADPF foi impetrada pela União por conta de legislação municipal que, devido à inação da Codesp na solução de problemas ambientais decorrentes da operação de granéis sólidos, minerais e agroalimentares, havia tornado desconforme esse tipo de atividade nas áreas portuárias entre os bairros da Ponta da Praia e de Outeirinhos.
A alegação do Governo Federal era de que a legislação municipal impactaria negativamente no comércio exterior do País e que, pela Lei 12.815/2013, caberia à União definir a ocupação de áreas das poligonais dos portos organizados.
A legislação brasileira, via de regra, se presta às mais diversas interpretações, o que justifica nosso País ter tantos operadores do Direito. Mas, nesse caso, faz sentido, pois as áreas objeto da restrição de operações de granéis são consideradas zona portuária pela legislação municipal de uso e ocupação do solo. Assim, se é permitido o uso portuário pela legislação municipal, a Lei dos Portos faculta à União definir a ocupação.
Reiterando, o problema não estava na existência de terminais portuários na região, o que é compatível com a legislação municipal, mas no impacto ambiental dessas operações no ambiente urbano. Aliás, esse impacto foi posteriormente mitigado após a renovação de contratos de arrendamento, por meio de programas ambientais e compromissos de utilização de tecnologia no “estado da arte” nas operações portuárias de granéis sólidos.
No entanto, se essa interpretação é justificável, no caso de ocupação portuária compatível com o zoneamento urbano, não cabe quando isso ocorre em desconformidade com a legislação municipal de uso e ocupação do solo, mesmo que a área considerada esteja dentro da poligonal do porto organizado. Essa é minha tese, explicitada no mencionado artigo.
No caso específico das poligonais, sua definição à revelia da legislação municipal de uso e ocupação do solo, mesmo que sob o argumento de que as áreas a serem incorporadas pertencem ao patrimônio da União, é passível de contestação ou, no mínimo, controvérsia.
O TCU já teve interpretações e reinterpretações sobre temas afins. Um entendimento errôneo, em minha opinião, é de que, a partir da definição ou redefinição da poligonal dos portos, a Lei 12.815/2013 atribui à União a prerrogativa de ocupar sua área com a atividade que julgar necessária, independentemente da legislação municipal de uso e ocupação do solo. Isso significaria, segundo esse entendimento, que a área da poligonal se tornaria um território federal.
Porém, segundo a Constituição vigente, não há territórios federais no Brasil: ou eles foram transformados em estados, ou foram anexados a outros (caso de Fernando de Noronha). A Carta Magna ainda define que um território, para ser criado, depende de plebiscito, com posterior aprovação no Congresso Nacional. No caso das poligonais de portos organizados, inicialmente elas eram definidas por decretos, sendo atualmente por portarias ministeriais.
Ao consultarmos os dados do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), é possível constatar que as áreas territoriais de cidades portuárias não distinguem nem excluem as poligonais de portos organizados, terminais de uso privado (TUPs) ou estações de transbordo de cargas (ETCs).
O artigo conclui que qualquer tipo de conflito pode ser evitado se o planejamento urbano-portuário for feito de forma conjunta, direta, antes do assunto ser encaminhado para audiências públicas. Desta forma, já estará conciliado entre os dois principais atores do processo: Autoridade Portuária e Município. Isso vale para a definição dos planos mestres, dos planos de desenvolvimento e zoneamento (PDZ) dos portos e das poligonais de portos organizados.
A legislação brasileira já é bastante confusa e, conjugada com a burocracia estatal, vem prejudicando o desenvolvimento do País, por mais sustentável que seja o empreendimento ou iniciativa. Assim, o que for possível conciliar previamente tende a reduzir a ocorrência de conflitos e impedâncias.
A relação porto-cidade deve ser ampla, mas tem fundamentalmente duas pessoas jurídicas: a União, tendo as autoridades portuárias como atores diretos do sistema portuário nacional; e os municípios, como detentores da prerrogativa constitucional da definição da legislação urbanística.
O projeto Parque Valongo, em Santos, é um bom exemplo de como a relação porto-cidade pode ser efetiva e positiva para todos os envolvidos. No caso, a viabilização desse projeto decorreu de um alinhamento entre a Autoridade Portuária de Santos, a Prefeitura de Santos e operadores portuários. Além da revitalização de área portuária desativada desde 1988 – desde então, em progressiva deterioração, prejudicando a ambiência do Centro Histórico e a imagem do porto e da cidade -, o Parque Valongo proporcionará a santistas e turistas a visualização do Porto de Santos, atividades culturais, artísticas e gastronômicas, também fomentando investimentos nas áreas urbanas adjacentes. Com a almejada transferência do terminal de cruzeiros para a região, o Centro Histórico tende a se tornar uma referência nacional em turismo.
Isso demonstra que a relação porto-cidade é muito mais do que um modismo, mas um instrumento para alinhar demandas ambientais, sociais e econômicas, em sintonia com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e com o conceito de ESG, conciliando interesses públicos e privados.
Assim, fica claro que não há como dissociar cidade e porto, irmãos siameses que são. E tão importante quanto estarem ligados fisicamente é saberem trabalhar em conjunto, não importa se o porto é público ou privado, se federal ou delegado, pois as cidades portuárias têm interesse estratégico para o país. Afinal, por elas circulam 95% da corrente comercial do Brasil.