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“Depois dessa tragédia precisamos rediscutir o Brasil”, diz ex-secretário de Saúde de SP
O conhecimento de gestor da saúde pública é importante, mas na conversa com o infectologista Jean Gorinchteyn, ex-secretário estadual de Saúde de São Paulo, o refinamento de empatia e amor ao próximo é o que se acentua. “As alterações climáticas vieram para ficar, é essencial um olhar de preparo para as chuvas, para as secas, para o desmatamento”, alerta, preocupado. Nesta entrevista exclusiva, feita no corre-corre da vida profissional intensa, ele comenta os riscos das doenças físicas e mentais que assombram os moradores das áreas destruídas no Rio Grande do Sul, e pensa o futuro.
Quais os principais impactos dessa tragédia?
Quando olhamos pelo lado da saúde, os impactos se dividem em impactos momentâneos e impactos com repercussão no futuro. Os momentâneos são decorrentes da exposição a essas águas de chuvas, na medida em que as pessoas foram e estão resgatadas e expostas a doenças ligadas aos transbordos de córregos e rios, especialmente a leptospirose. Muitas pessoas foram obrigadas a nadar onde houve esses transbordos, engoliram águas de esgoto, contaminadas, há o risco de diarreia infecciosa, Hepatite A e outras doenças sérias. Os impactos com repercussão no futuro estão ligados à saúde, ao meio ambiente
E os impactos para o futuro?
São os que provocam desassistência para aqueles que precisam do sistema de saúde, quando falamos em praticamente 800 centros de atendimento à saúde (incluindo unidades básicas de saúde, hospitais e prontos-socorros). Há o comprometimento da distribuição de medicamentos (seja pelo SUS ou pelas drogarias atingidas) para pacientes que fazem uso regular da medicação para problemas como hipertensão, diabetes ou outras patologias. Não podemos esquecer que muitos fazem tratamento de forma regular como quimioterapia e cirurgias.
Há outros riscos?
Sim, esse empoçamento de água ainda terá efeito mais prolongado, predispõe à multiplicação do mosquito da dengue. Tivemos nesse início do ano mais de 100 mil casos de dengue no Rio Grande do Sul. Então, a chance de aparecerem novos casos é uma realidade. Mas também devemos pensar nas baixas temperaturas e as pessoas confinadas em albergues e ginásios, o que também favorece a circulação de vírus respiratórios, como o Influenza e a Covid 19.
E as consequências emocionais?
O futuro traz preocupações de várias espécies com a saúde. A repercussão será grande na esfera da saúde mental, e isso já vem acontecendo. Temos que amparar e acolher essas pessoas, para que voltem às suas vidas enfrentando recomeços difíceis. É preciso lembrar que vão voltar de onde vieram, mas as suas casas, na maioria das vezes, não mais serão casas habitáveis; outras implicarão em grandes reformas. Muitas também perderam seus familiares, além das perdas materiais. Haverá impacto forte na saúde mental como depressão, por exemplo.
E a questão ambiental?
Fora os impactos relacionados a toda essa destruição, que ainda vamos testemunhar, tivemos o comprometimento da qualidade da água, que mesmo tratada ainda está exposta a metais pesados. Muitas áreas rurais da região usavam defensivos agrícolas, de toda forma contaminando as águas de mananciais. Hospitais, clínicas radiológicas e clínicas odontológicas também foram destruídas. Como esses materiais serão recolhidos? Qual o impacto de uma possível radiação para o meio ambiente daquela região? E o lixo? Tudo tem que ser revisto para saber para aonde mandar esses materiais.
Quais as medidas emergenciais?
É preciso ficar bem atento a surtos que podem acontecer nesses locais, continuar os programas de vacinação não só das crianças, mas dos idosos e dos mais vulneráveis com doenças crônicas, obesos. Todas essas pessoas devem ser engajadas para atualizar suas condições de vacinação, principalmente para a gripe. Entramos no período de baixas temperaturas, quando aumentam os casos.
O médico é treinado para salvar vidas, nessas situações vem a sensação de impotência?
Não, a hora é de agir, promover a integração da área médica e, especialmente, das ações e das plataformas voltadas para o público e o privado. Temos que apoiar os governos seja municipal, estadual ou federal, ajudar na logística de distribuição de alimentos, medicamentos, limpeza das regiões. Será que vai ser preciso criar aterros? De novo, a unificação do público e privado vai ser a única forma de respondermos.
A mobilização tem que continuar?
Agora é essencial pensar essas cidades como um todo. Por enquanto estão todos sensibilizados, fazendo as suas doações, mas a água vai baixar. Infelizmente as pessoas perderam familiares, empregos e casas. Vão necessitar de incentivo, e não só do governo dando empréstimos e baixando juros. Mais do que isso é dar a essas pessoas possibilidade de se refazerem do ponto de vista social.
É a pior situação que já viveu?
Eu fui secretário estadual da Saúde na época da pandemia, vivendo uma situação diferente e muito adversa, em que era preciso preparar o sistema de saúde e convencer as pessoas a ficarem em casa. A enchente no Rio Grande do Sul é uma tragédia humanitária, social, convulsão de situações que acabam sendo emergenciais, você tem que dizer para as pessoas saírem de suas casas para não morrer.
Como acolher quem está vivendo todo esse drama?
Aí entra a necessidade de uma resposta social de acolhimento. Se não houver engajamento de toda sociedade como um todo, o povo do sul terá muitas dificuldades para refazer suas vidas. É muito bom sentirem que não estão invisíveis, que não foram esquecidos. Eu vi uma entrevista tocante de um senhor que foi resgatado, tomou a água que veio de São Paulo e disse que foi lembrado pelos irmãos que moram longe. É a sensação de que todos estão juntos, colaborando, é o espirito de solidariedade.
Mas até quando vai?
É natural que a vida siga e muitos já não querem assistir tanta tristeza, querem mudar o canal da TV. A realidade acaba fazendo com que as pessoas retomem suas vidas, mas é preciso entender que se essas pessoas não tiverem nosso apoio não retomarão as condições mínimas de dignidade. É natural que o governo em todos os níveis também tenha limitações. Muitas medidas nessa área pública seguem ritos burocráticos que acabam demorando e prejudicando a resposta às soluções tão urgentes. É preciso um grande grupo de apoio de pessoas que possam fazer a diferença .
No Brasil temos histórico de repetições de tragédias. Há solução?
Já se imaginou uma tragédia anunciada em toda questão ligada aos rios, aos mananciais, à própria expectativa de chuvas que já se imaginava que seriam fortes. Tudo isso teve uma certa previsibilidade, mas nunca ninguém imaginou essa quantidade de chuvas, algo histórico e em todo o Estado. Se imaginava que pontualmente algumas regiões pudessem se afetadas, mas não dessa forma.
E o presente?
Infelizmente o presente é dramático. Agora é o momento de se falar de segurança alimentar. Não adianta só mandar o arroz, é vital criar cozinhas solidárias, industriais, uma cidade quase inteira para alimentar. Reconstruir as unidades básicas de saúde, fazer com que os remédios cheguem nas regiões mais carentes, muitas pessoas ainda ilhadas. Temos que reconstruir pontes e estradas para que as pessoas possam se reconectar.
E o futuro?
Depois disso, nós vamos precisar rediscutir o Brasil (e o mundo). As alterações climáticas vieram para ficar. É essencial um olhar de preparo para as chuvas, para as secas, para o desmatamento. Vamos rediscutir essa questão ambiental com seriedade para tentar impedir ou minimizar ao máximo o impacto dessas ações climáticas e catástrofes como essa.
O que é a Medicina para o senhor?
A Medicina é arte de acolher o ser humano, é a possibilidade de através da técnica, que se aprende nos livros e na universidade, juntar com a sua sensibilidade, intuição, solidariedade e amor à vida.
Qual seria a mensagem para os profissionais que estão atuando no Sul?
São heróis anônimos. Médicos e enfermeiros continuaram fazendo atendimento com água pelos joelhos. Isso mostra o amor à profissão e a solidariedade. Todos engajados em ajudar, temos profissionais aguerridos, médicos e paramédicos na linha de frente, outros que saíram de suas regiões para colaborar. É assim, que podemos fazer o melhor para a nossa população.