A janela de Beatriz
“A jovem Beatriz descobriu que a dimensão da vida pode contemplar o esquecimento, nem que seja por pouco tempo. E a neve do Chile, naquele momento, a fazia deslizar para outra dimensão, nova silhueta, novo idioma, novas realidades possíveis. O novo cansa, mas naquele momento Beatriz só queria sorver o ineditismo do que via, o frescor do ar que respirava, as sensações que sentia diante do seu imaginário”
Somos as janelas que abrimos e cada uma tem o dom de um espelho que faz enxergar além. As janelas, quando abertas, devassam uma nova realidade ou uma nova fantasia, como o buraco em que mergulhou Alice perseguindo o coelho.
Disse o poeta que a cidade em que nascemos e nos percebemos é nosso primeiro amor. Mas a vida é plena de possibilidades, de paixões e amores que não findam. Nunca é tarde para abrir uma janela, mas quando se é adolescente há um furor maior pela descoberta. Beatriz já havia experimentado paixões, outras cidades, porém sempre lhe pareceram extensões da sua. Já havia também estado em Orlando, mas aquela janela que se lhe abrira expôs a fantasia de Disney.
Desta vez, já adolescente, ficou assombrada quando abriu a janela, saltou para fora e deu de cara com a neve. E os flocos começaram a criar sua própria fantasia. Quão ricas são as fantasias que brotam de nossa própria inspiração! Os Andes esbranquiçados, longe de representar barreira, fizeram-na esquiar assombrada com um mundo além dos muros da sua cidade, que deixara sem saudade. Pois quando se parte, com tanta vontade de partir, deixa-se para trás os entulhos da desilusão e os fantasmas da memória. Parte-se – ou deve-se partir – sem olhar para trás para não fraquejar e ceder à tormenta de carregar na mala o que se pretende esquecer. A viagem é um misto de descartar coisas do passado e catar outras ilusões.
A jovem Beatriz descobriu que a dimensão da vida pode contemplar o esquecimento, nem que seja por pouco tempo. E a neve do Chile, naquele momento, a fazia deslizar para outra dimensão, nova silhueta, novo idioma, novas realidades possíveis. O novo cansa, mas naquele momento Beatriz só queria sorver o ineditismo do que via, o frescor do ar que respirava, as sensações que sentia diante do seu imaginário.
Não esqueço seu silencioso olhar ao contemplar, na despedida, a cordilheira que se confundia com as nuvens. Nem sua sanha em desbravar as ruas que jamais havia percorrido, tampouco a constatação de que a natureza não é toda igual. As folhas caídas das frondosas araucárias lhe recordavam paisagens que vira pelo celular em outras plagas do mundo e que só agora começava a transpor além das telas.
Os olhos de Beatriz se perdiam nas avenidas que não cansava de degustar, no emaranhado de telhados e coberturas minúsculas para quem mirava do 66º andar do Sky Costanera, ou percorria o extenso túnel sob o rio Mapocho.
Lá, em Santiago, Beatriz sentia felicidade única, íntima e indescritível, de quem descobre um amor infinito que não quer abandonar. Tento concordar com ela, de que a capital chilena parece sim uma São Paulo que deu certo. O país tem suas chagas e seus conflitos. As tristes lembranças de tempos sombrios que custaram vidas. Mas é uma gente mesclada de luta, como por três séculos os colonizadores tiveram que enfrentar a resistência dos mapuches, principal etnia originária que não se subjugou aos invasores diferentemente de outros povos andinos como os incas, apesar de seu alto padrão civilizatório.
Para mim, o fantástico Chile tem no ar os versos de Neruda, o cantarolar de Violeta Parra. Para ela, tem o sabor da fantasia de um mundo novo em que escolheria viver. Tento mostrar-lhe que há muitos outros cantos do mundo atrás da sua janela, e sua iniciante existência lhe mostrará um dia que, naquele momento, apenas estava extasiada com a descoberta de que seu mundo pode ser muito maior do que o quintal de sua casa.
O qual um dia, cansada de desbravar, se sentir grande mas cansada, se lembrará de um quintal distante que a acolheu para a vida, abrindo sua primeira janela para suas próprias fantasias.