A ética da baleia
“Os caranguejos são feios e suas garras prontas a me lancetar. Será a ameaça que nos faz querer destruir e deglutir num grande ritual regado a cerveja? Estes quero digerir porque são feios e brutos. As baleias não, tampouco as orcas e os golfinhos. Estes não nos ameaçam, são meigos, fazem estrepolias dignas dos Jogos Olímpicos, e há até quem acredite que falam baleiês, o idioma das baleias que não consigo entender mas me anima”
O Japão chocou o mundo. Lançou aos gélidos mares antárticos o Kangei Maru, um navio-fábrica, de 112,6 metros, ao custo de 48 milhões de dólares, para caçar e desossar baleias. A tecnologia nem sempre é bem-vinda e confronta com a ética.
Choro, como tantos, o prenúncio da morte daquelas que alimentaram minhas fantasias com eterna amizade. Desde quando Moby Dick brotou das páginas para se aventurar na minha imaginação. Choro enquanto não choro pela Ucrânia, Gaza e Venezuela. Choro enquanto, de alegria, aplaudo Sininho, que parece ter voado da fábula de Peter Pan para encantar o Brasil.
Inevitável eu refletir sobre as circunstâncias do choro e da morte. As baleias, como todos os cetáceos, me encantam. Baleias, orcas, botos e golfinhos, mamíferos aquáticos que independem do verão nas minhas aventuras além-mar.
Mas por que gosto tanto deles? Por que não sinto o mesmo clamor por bois, porcos, formigas e caranguejos? Você dirá que os porcos até que são simpáticos, apesar da sujeira. E os bois são responsáveis por boa parcela do gás expelido por flatulência na atmosfera, ameaçando o planeta. Sei que é verdade, mas não é isso que conta quando penso nas baleias com especial carinho e dor.
Os caranguejos são feios e suas garras prontas a me lancetar. Será a ameaça que nos faz querer destruir e deglutir num grande ritual regado a cerveja? Estes quero digerir porque são feios e brutos. As baleias não, tampouco as orcas e os golfinhos. Estes não nos ameaçam, são meigos, fazem estrepolias dignas dos Jogos Olímpicos, e há até quem acredite que falam baleiês, o idioma das baleias que não consigo entender mas me anima.
Será essa a ética da natureza? Desprezo e quero destruir quem é feio, mortal e não me traz alegria? Há quem coma formigas, outros, serpentes. E até cachorros, para repugnância de tantos. Confesso que já saboreei gafanhotos, num aperitivo mexicano com tequila, da qual alguns subtraem lesmas no sabor das conversas de botequim.
As baleias, não. Estas quero-as bem, e por isso choro ao imaginá-las na agonia de sua morte, já que não é um arpão certeiro que lhes encerra a vida, senão apenas o princípio da agonia. Tentando entender a lógica desse abate, penso nos japoneses, que por outros motivos admiro. Sou testemunha de seu alto grau civilizatório, que apreciei em breve visita. Só não admirei quando, num jantar repleto de iguarias, em Nagasaki, saboreei sashimis que, para minha surpresa, incluíam carne de baleia. Nunca esquecerei o dissabor daquela carne esponjosa que parecia conter gritos.
Foi certamente um jantar incomum, numa terra onde mais se consome uma espécie de sopa de macarrão. Sashimi só eventualmente, é coisa mais de brasileiro, e li que hoje só 4 por cento de seu povo aprecia devorar baleias.
Contra a vontade do mundo, o Japão cala essas grandonas do alto-mar, sob pretexto de pesquisa científica. Há muitas desculpas a perpetuarem o procedimento e a justificativa final é que faz parte da cultura matar baleias, que foram muito apreciadas por necessidade no período pós Segunda Guerra. Mas delas nada se perde, desde quando seu óleo amalgamava as paredes. Ainda hoje a seiva de alguns cetáceos é fixador de fragrâncias. Sim, dá garantia a bons perfumes. Como, segundo a lenda, até hoje os bagos de carneiros montanheses garantem o sucesso do Chanel Número Cinco.
A verdade é que a ética depende da cultura. E de interesses que às vezes nem os mais inesquecíveis odores disfarçam contradições. É a natureza de todos que este planeta habitam, seja qual grau de inteligência e simpatia tiverem. Até porque as orcas, primas dos golfinhos, são seus predadores e frequentemente fazem bullying com eles antes de os dilacerar. E então choramos sinceramente por estes engraçadinhos às vezes mais humanos que nós, que só choramos pelas guerras quando os ouros não conquistamos no podium ou baleias e golfinhos não nos divertem mais.