O funeral do saber
“Gostaria que o Brasil ressignificasse a Educação. Informações em demasia e sem conexão cognitiva e emocional são apenas dados. A verdadeira informação é aquela que lemos, vemos e ouvimos, fazendo-nos refletir, o oposto do carrossel das redes sociais.”
A ignorância não envergonha tantos jovens que fazem da diversão o sentido da falsa vida, e o funk é sua melodia. Deparei outro dia com uma enquete no Instagram onde se perguntava a adolescentes na rua ‘quais são os três estados da água’. As respostas, sem convicção, não lhes causava vergonha: ‘Minas Gerais, São Paulo, Brasil…’ Suas caras líquidas lavadas mostravam cérebros gasosos e almas sólidas de uma mediocridade não assumida.
As respostas estampavam dupla tragédia: o desconhecimento dos estados da água; e a dificuldade de raciocinar antes das absurdas respostas que mais pareciam deboche. Fico pensando o quanto o celular está causando dano cognitivo, o quanto vivemos num mundo de fantasia, e o quanto a escola contribui para isso.
Cristiano Ronaldo tirou o celular do filho e quer que o menino adolescente viva no mundo real, tenha foco e se forme como um ser pleno. Invejo sua atitude, que não consigo imitar com tanto rigor. Não justifico minha fraqueza, mas é fato que o mundo não me ajuda na completude de um ser civilizado mediante absorção de valores reais e modos de ser para si e para os demais.
A escola, da maneira que atua hoje em nosso país, às vezes é cínica, alerta sobre os abusos do celular mas o utiliza em suas práticas, no faz de conta que reproduz o modelo de robotização que parece só objetivar a competição e para isso o armazenamento de dados. Saudade do tempo em que lições de casa, avisos e boletins só existiam no papel, onde as garatujas iam sendo transformadas em caligrafia desenhada à pena de caneta tinteiro, ativando todos os setores do cérebro.
Não perco tempo neste espaço para lembrar todos os malefícios do celular. Mas é fato que expõe as vísceras de um ser imperfeito a pretexto da livre expressão. Deseduca e, pior, avilta os mais puros sentimentos de um bebê, obra perfeita do Universo. Tentamos aculturar o ser e o estragamos.
Na escola – e mesmo em casa, sejamos honestos – o estímulo é para criarmos seres competitivos, aprendizes do sucesso, consumidores vorazes, seres infelizes por serem quem não são na sua essência.
Lecionei por dezessete anos em universidades. Não me considero um educador, tampouco sou expert em Pedagogia. Mas nunca me preocupei em despejar dados na lousa, até porque o giz me dava aflição. Gostava mesmo de discorrer sobre experiências, explicar conceitos, estimular o raciocínio e ajudar os alunos a domarem o cavalo que é a escrita. Não creio ter deixado algum legado, mas ninguém poderá dizer que eu cobrava sopa de letrinhas e números como os vestibulares de hoje em dia.
Nunca precisei fazer operações matemáticas além da regra de três, apesar de ter sido traumatizado enquanto aluno por tantas equações que tiravam minha alegria, obrigando-me a tanta decoreba. Setenta por cento do que me ensinaram não me serviu para nada. Mas antes pelo menos tínhamos bons hábitos. Abríamos nossas cabeças pelas páginas dos livros.
Gostaria que o Brasil ressignificasse a Educação. Informações em demasia e sem conexão cognitiva e emocional são apenas dados. A verdadeira informação é aquela que lemos, vemos e ouvimos, fazendo-nos refletir, o oposto do carrossel das redes sociais.
Ainda há tempo para mudanças, se é que o caos ambiental fatal não chegará antes, junto com as guerras bestiais. Começamos a pensar em proibir celulares nas escolas. Países como Suécia, Finlândia e Japão correm anos luz à frente. Volver a Educação, abaixo o digital. Criança tem que brincar, descansar, se exercitar e aprender bons costumes e valores. Informações, só as mais necessárias. Cabe a cada um trilhar depois o seu caminho, ir em busca dos dados que precisa para construir sua estrada com livros ao invés de paralelepípedos de dados, que acabam por nos forjar um espírito rochoso.
Mas sinto que é pedir demais neste mundo virtual que nos transformou em tristes avatares e onde a existência individual só reflete um mundo de pobre aparência, como um espelho. A estética, palco da beleza que alimenta os olhos e a alma, exacerbada, faz-nos esquecer a saúde mental e, mais que isso, a dimensão da alma.
Aí vivemos no mundo do espetáculo e atrofiamos nosso sentido existencial, que faz com que aqueles jovens na rua, encantados com a câmera e os likes, se preocupem mais com o flash do que com o saber. Mas, como disse um dia Eduardo Galeano, são tempos em que o funeral é mais importante que o defunto.