Igualdade desigual
Por Marcelo Kanitz
Advogado, sócio da Amorim, Trindade, Kanitz e Russomano Advogados e vice-presidente administrativo da Academia Brasileira de Direito Portuário e Marítimo
Nada mais injusto que tratar desiguais de forma isonômica. Parafraseando Aristóteles devemos “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”.
Nossa Constituição Federal, no intuito legítimo de igualar os direitos entre trabalhadores avulsos aos direitos dos trabalhadores com vínculo empregatício permanente, findou, ainda que não intencionalmente, justamente por criar uma série de assimetrias. Isso porque, as realidades vivenciadas pelos trabalhadores avulsos, por vezes, não comportam toda a gama de direitos que são conferidos aos trabalhadores contratados a vínculo empregatício por prazo determinado.
Preconiza o art. 7º, inciso XXXIV, da Constituição Federal, a “igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso”. E o faz de forma irrestrita, ampla e, como qualquer norma de índole constitucional, de aplicação incondicional.
Tomando-se os portos brasileiros como exemplo, onde a relação de trabalho avulsa é uma realidade inexorável, essa assimetria é constatada e verificada constantemente, dificultando, e por vezes até mesmo obstando, a real aplicação do conceito constitucional de igualdade, especialmente se não se buscar alguma forma de amoldar seu conteúdo normativo ao cotidiano e às peculiaridades da relação laboral portuária.
A realidade da relação de trabalho portuária avulsa, ao ser confrontada com a igualdade constitucional preconizada no art. 7º, inciso XXXIV, apresenta desafios cotidianos justamente em face da dificuldade de sua implementação, seja em relação a direitos simples, seja em relação a direitos mais complexos.
Veja-se, por exemplo, a questão atinente a aposentadoria espontânea extinguir ou não o contrato de trabalho. Inquestionável que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 1721, assentou que a aposentadoria espontânea não é causa extintiva do contrato de trabalho, inclusive julgando inconstitucional o quanto até então estava previsto no art. 453 da CLT. No entanto, em que pese a aposentadoria não seja causa extintiva do contrato de trabalho, nada impede que o empregador, no exercício de seu poder potestativo, ponha termo à relação empregatícia, arcando, por óbvio, com os custos desta rescisão.
Ao se trazer parâmetros de igualdade absoluta para a atípica relação portuária avulsa, tem-se que o efeito é uma verdadeira eternização da relação laboral, porquanto não existe na legislação especial portuária previsão de sua extinção por iniciativa dos Órgãos Gestores de Mão de Obra (Ogmo) ou dos Operadores Portuários, redundando em envelhecimento e engessamento dos quadros e ausência de renovação dos trabalhadores portuários. Como se diz, há porta de entrada, mas não há porta de saída, restando a decisão apenas ao próprio trabalhador (ressalvada a hipótese óbvia de falecimento).
A hipótese acima retrata, com primor, que a aplicação irrestrita da igualdade pode gerar, ao revés, verdadeira assimetria de direitos, porquanto os trabalhadores com vínculo empregatício, ao se aposentarem, não tem o direito de se contrapor a eventual rescisão do contrato de trabalho, já os trabalhadores portuários avulsos mantém-se inscritos nos OGMOs enquanto lhe for interessante ou até seu falecimento.
Outra questão que muito bem retrata que a aplicação irrestrita da igualdade constitucional, sem a devida distinção da realidade, redunda em desigualdade é a questão da jornada de trabalho e o pagamento de horas extraordinárias. Por certo, quando um empregador submete seu empregado a sobrejornada, o faz para alcançar apenas seus interesses, elastecendo a jornada de trabalho para alcançar apenas maior lucratividade para sua atividade econômica. O pagamento de horas extras visa justamente compensar o trabalhador, que nenhum ganho obteria em decorrência do elastecimento da jornada de trabalho.
Porém, para um trabalhador portuário avulso, que tem plena liberdade de escolher quais e quantos trabalhos irá realizar no dia, na semana ou no mês, trata-se, em verdade, de uma escolha praticamente individual, pouco favorecendo o Operador Portuário ou mesmo os OGMO. Isso porque, caso não se engaje em determinada faina, por certo haverá outro trabalhador portuário avulso para aceitar e executar o trabalho ofertado. A desigualdade aqui reside no fato de que não se trata de um elastecimento por iniciativa da empresa, mas sim do próprio trabalhador, que tem intenção de majorar sua remuneração, sem qualquer benefício direto aos seus tomadores de serviço. Tal hipótese, contudo, não se aplicaria nunca a um trabalhador com vínculo empregatício, que não poderá, por iniciativa exclusivamente sua, elastecer sua jornada visando maior remuneração.
Por sua vez, a questão atinente ao gozo de férias e seu pagamento em dobro em caso de não concessão é um bom exemplo jurisprudencial acerca da necessidade de adequação desta igualdade à realidade do trabalho portuário avulso, restando pacífico perante o Tribunal Superior do Trabalho que o trabalhador avulso portuário tem liberdade para escolher o melhor momento para usufruir de suas férias, não podendo com isso apenar os Operadores Portuários ou os Ogmos com a determinação de pagar férias em dobro por suposta não fruição. Ressalte-se que o próprio trabalhador poderá definir o melhor momento para se afastar das escalas de trabalho para descanso e férias.
Há, portanto, que se aplicar com cautela e sabedoria o disposto no art. 7, inciso XXXVI da Constituição Federal, porquanto sua aplicação irrestrita e desconectada da realidade, pode, por fim, redundar em verdadeira assimetria e desigualdade.
Rui Barbosa muito bem pontou ao afirmar que “tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”.[1]
[1] Barbosa, R; Obras completas de Rui Barbosa – Trecho de discurso no Largo de São Francisco, em São Paulo, intitulado Oração aos Moços.