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Crise de confiança: o que está em jogo com a suspensão da cobrança pela guarda provisória de contêineres?

Por Gabriela Heckler – Gerente Jurídico e Compliance da Brasil Terminal Portuário (BTP). Doutoranda em Direito pela Universidade de Hamburgo
Guilherme Monteiro – Advogado do escritório Lourenço Ribeiro e pós-graduando em Direito Administrativo pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP)

 

A recente decisão da ANTAQ, proferida na 572ª Reunião Ordinária de Diretoria, marca um ponto de inflexão na regulação portuária do país. Ao suspender a cobrança pela prestação do serviço de guarda provisória de cargas – prevista no item 1.2.13 do Anexo II da Resolução ANTAQ nº 109/2023 – abre-se um leque de questionamentos não apenas sobre a análise regulatória da agência, mas também sobre as consequências práticas dessa deliberação para todo o mercado de portos no Brasil.

Em agosto/2024, o MDIC concedeu à Antaq o selo Ouro pela Resolução nº 109/2023 da agência, reconhecendo, assim, a excelência regulatória e a clareza nas definições de serviços portuários. Como, então, conciliar essa distinção premiada com a revogação de um item fundamental, e que é o resultado de um procedimento de aprovação da norma que tramitou por quatro anos, com amplas discussões e aprovação unânime pela Diretoria da ANTAQ?

A revogação do item 1.2.13 foi baseada em um entendimento que, à primeira vista, sugere uma mudança de postura da ANTAQ em relação à própria lógica regulatória que ela construiu. Por mais de uma década, mesmo sob questionamento judicial e em órgãos de controle, a ANTAQ consolidou, por meio da Resolução nº 2.389/2012 e suas subsequentes (como as Resoluções nº 34/2019 e 72/2022), uma linha de entendimento muito clara: “a cesta de serviços no âmbito do box rate abrange, na importação, os serviços prestados até a colocação do contêiner na pilha”.

Essa opção regulatória por limitar a box rate na importação até a colocação do contêiner na pilha é muito lógica. A partir desse momento, cada carga terá um caminho diverso e, portanto, uma variedade de serviços. Se todos esses serviços prestados a partir de então estivessem incluídos na box rate, os usuários pagariam por todos os serviços, ainda que não usufruíssem de todos eles. Por consequência, isso sim aumentaria o Custo Brasil. A restrição da abrangência da box rate, portanto, é a opção mais econômica para os usuários e para toda a cadeia logística. O usuário só paga pelos serviços que usufrui, e não há nenhuma cobrança em duplicidade.

Afora isso, é inegável que o papel do terminal portuário, conforme previsto no Regulamento Aduaneiro e na Lei dos Portos, transcende a simples movimentação de mercadorias. Ele assume, de fato, uma responsabilidade bem mais complexa e relevante: a de fiel depositário das cargas sob sua guarda. Ao se fazer com que o terminal atue como um depositário, estabelece-se um vínculo jurídico oneroso. O terminal não guarda mercadorias por cortesia – ele o faz dentro de um arcabouço normativo que lhe impõe riscos, responsabilidades e custos. Juridicamente, trata-se de um depósito necessário, que, de acordo com o Código Civil, não se presume gratuito (artigos 647, I, e 651).

Portanto, ainda que a carga seja armazenada (para efeitos aduaneiros) em outro recinto alfandegado, enquanto ela está sob a guarda do terminal portuário, há custos e responsabilidades do terminal sobre ela. Inclusive, no ordenamento jurídico brasileiro, as responsabilidades do terminal portuário como depositário das cargas não têm nenhuma limitação normativa, o que contrasta com as práticas adotadas nos principais polos portuários globais.. É diferente do que ocorre na Alemanha, por exemplo, em que a responsabilidade do recinto se limita ao equivalente a R$6,64/kg de carga.

Assim, a suspensão da cobrança pelo serviço de guarda provisória, está, na prática, ignorando o ônus que a legislação impõe ao terminal. Isso significa que, ao desonerar os terminais retroportuários desse custo, transfere-se o fardo para os terminais portuários, que permanecem com a responsabilidade e os riscos, mas sem a devida compensação financeira.

Ficam, assim, várias perguntas. Os terminais portuários não serão mais os responsáveis pelos custos decorrentes da guarda das cargas? Quem vai pagar pela outorga da área pátio (em que ficam segregados os contêineres mantidos em guarda provisória), pela tecnologia empregada e pelos profissionais especializados atrelados a essas atividades? Havendo avarias ou o não recolhimento de impostos, os terminais não serão mais responsabilizados?

Note-se inclusive a artificialidade da solução adotada. Por ela, se um contêiner fica dois dias no terminal portuário, ele poderá cobrar pelo depósito quando a presença de carga ocorrer no próprio terminal, mas não poderá cobrar pela mesma atividade quando a presença de carga se der em outro recinto. Com o máximo respeito, não há lógica nesse entendimento, uma vez que a atividade de depósito prestada nos dois casos é exatamente a mesma, com os mesmos custos e responsabilidades.

As normas editadas por agências reguladoras, como bem sabemos, não têm natureza constitutiva. Elas não têm o poder de criar ou destituir novos direitos ou deveres. Muito menos podem contrariar previsões contidas em lei formal. Isso significa que a ANTAQ, ao regulamentar o serviço de guarda provisória, deveria apenas reconhecer sua existência e definir suas diretrizes operacionais, inclusive instituindo critérios de avaliação de abusividade, se for o caso, e penalizando condutas concretas que estejam em discordância com as normas. Não cabe à agênciaa agência alterar a natureza jurídica do serviço nem impedir que haja a cobrança de uma contraprestação – afinal, de acordo com o Código Civil, o depósito legal não se presume gratuito. Ao decidir pela suspensão dessa cobrança, a agência parece assumir um papel constitutivo, criando um novo cenário regulatório que contraria a legislação.

Mas, para além disso, a suspensão da cobrança pelo serviço de guarda provisória não é apenas uma questão tarifária. É uma desconstrução da previsibilidade que deveria reger o mercado portuário. O investidor olha para o Brasil e vê um cenário onde regras podem ser alteradas do dia para a noite, sem consulta, sem aviso prévio, em julgamentos de casos concretos, sem as devidas análises de impacto regulatório e desconsiderando todo um histórico de entendimentos já consolidados no próprio órgão regulador. É como se estivéssemos perpetuamente mal colocados em rankings de Economic Freedom e Doing Business, dentre outros motivos, pela insegurança jurídica. A ANTAQ deve atuar para harmonizar o setor, conforme determina o artigo 20, II, b, da Lei nº 10.233/2001 – mas nesse assunto, gera dúvidas. E essas dúvidas geram subsídios cruzados, distorções que impactam nos investimentos dos terminais portuários.

Um ponto de atenção é o argumento do voto condutor, que interpretou de forma descontextualizada uma decisão do TCU de 2019, originalmente sobre THC, como aplicável ao serviço de guarda provisória. Essa extensão de entendimento deixa de levar em conta o fato de que, um pouco antes desse julgamento da ANTAQ, o próprio TCU, em auditoria operacional, já havia emitido instrução técnica indicando ser legítima a cobrança pela guarda provisória. A cobrança foi justificada pela clara distinção entre box rate, THC e SSE, e pela responsabilidade ilimitada que os terminais possuem sobre a carga – afinal, as mercadorias ocupam fisicamente o espaço do terminal. A qualidade desse estudo foi até publicamente endossada pelos Ministros Jorge Oliveira e Benjamin Zymler na Sessão de Plenário do dia 18/09/2024, apesar de o trabalho não ter ainda sido julgado em definitivo.

 A ANTAQ está à mercê de diversos controles que já restringiram sua atuação técnica, e é temerário que, mesmo sem o Plenário do TCU ter se manifestado formalmente sobre a guarda provisória, a agência tenha adotado uma postura cativa, deferindo-se a uma interpretação que sequer foi formalizada. Movimentos regulatórios como esse geram incertezas ao mercado, passam ao largo da segurança jurídica que tanto se evoca e afastam investimentos importantes para o país – e que poderiam contribuir muito (estes sim) para a redução do Custo Brasil. Impedir que se cobre pela prestação de uma atividade que gera custos e responsabilidades definitivamente não é o melhor caminho.

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