O eremita tagarela
Delle, o golfinho-nariz-da-garrafa, está falando sozinho. Há cinco anos morando no Mar Báltico, Delle acostumou os habitantes das margens do canal Svendborgsund a encontrá-lo frequentemente nas redondezas, sempre sozinho. E chamou a atenção de pesquisadores da Universidade do Sul da Dinamarca.
Não é comum um golfinho solitário. A natureza da espécie, como de tantas outras, é ser gregário, viver em bando. Os cientistas passaram a gravar os sons que Delle emitia em variadas circunstâncias. Em artigo publicado na revista Bioacoustics, citada no site olhardigital.com.br, os autores sugeriram que algumas vocalizações podem ser uma resposta emocional, como o riso humano quando sozinho, ou uma forma de distração para aliviar a solidão.
O que teria desgarrado Delle de seu bando, contrariando a natureza? Algum trauma? Tristeza incontida por imensa depressão que mudou o seu destino? Será que sua conhecida capacidade interativa com os humanos provocou-lhe tal decepção que o fez desafiar seu caminho? Ou nada disso, e Delle é um eremita feliz.
Às vezes alguns seres falam sozinhos por distúrbio mental, ou porque fecharam as portas da convivência social, preferindo viver à margem do mundo isolado em seus pensamentos.
Há tempos o relacionamento desses cetáceos encanta a vida. Interagem com alegria, seja à beira dos oceanos ou no lamentável confinamento dos parques aquáticos. Mas mesmo neste caso nunca deixaram de encantar as crianças. Aliás, a infância de inúmeras espécies é sempre marcada por viver em bando, com alegria e para sobrevivência.
Variadas espécies de aves e peixes assim que nascem se juntam para viabilizar a vida e se defender dos agressores. Isso quando não permanecem grudadas em suas mães ou se escondem debaixo de pedras, esperando o tempo passar. Crustráceos como as lagostas preferem assim. Ficam escondidas dentro da casca que um dia se torna pequena diante do seu crescimento, e então trocam por uma casca maior, numa sucessão de trocas até que atingem a maturidade.
Há espécies marinhas que se disfarçam. Quando pequenas adquirem aspecto feroz para se proteger, até que, já adultas, ganham lindas escamas coloridas que atraem as parcerias. Há de tudo na natureza. Até espécies que não nascem no útero da mãe. O cavalo marinho vai contra o sentido geral. A fêmea deposita no macho seus óvulos, e então este os fecunda às centenas. E quando expele os pequenos seres, deixa-os à própria sorte. Por isso, das centenas de micro criaturas geradas, poucas sobrevivem.
Gostaria de saber a história de Delle, o golfinho com focinho de garrafa. Que sorte terá tido sua mãe? O instinto da maternidade sempre garante – ou deveria garantir – a proteção. Recentemente no Mar do Norte umas orcas – que derivam dos golfinhos, não das baleias, puseram-se a atacar embarcações. E num caso em particular suspeitava-se que se tratasse de vingança pelo abate humano à sua cria.
A história de cada um faz a realidade da vida. Não sei se Delle é um ser traumatizado por abandono ou decepção. Talvez, porém, numa inusitada decisão, Delle simplesmente tenha pensado que melhor estaria se vivesse longe da sua espécie. E de vez em quando se juntaria à algazarra das crianças à beira do Báltico. E quando não, se quedaria na profundeza do mar com seus pensamentos. Que externaria a si mesmo, no recôndito silêncio das águas, até que pesquisadores bisbilhoteiros o flagraram tagarelando sozinho.