Estilo BE
As muitas faces do caminhar
“Caminhar transforma os lugares”
James Hillman
Você já pensou que mobilidade é cidadania? É a capacidade de se deslocar, de se relacionar, de preparar o olhar para enxergar coisas escondidas na cidade e uma poderosa experiência de autoconhecimento. Quem fala do caminhar com tanta paixão é Mauro Calliari, mestre em urbanismo, doutor em história do urbanismo e colunista da Folha de São Paulo sobre o tema caminhadas urbanas. É autor do livro “Espaços Públicos e Urbanidade em São Paulo” e do livro infantil “São Paulo para crianças”. Para ele, andar é um ato natural, mas andar no espaço urbano não é. Nesta entrevista, tem muito mais:
Quando começou a se interessar pelo tema?
Eu era um executivo formado em Administração de Empresas que trabalhava muito. Um dia, senti que era preciso fechar um ciclo e imaginei o que eu gostaria de fazer. Pensei que gostaria de trabalhar com o caminhar, sempre tive curiosidade em me aventurar e descobrir a cidade à minha volta. Andar me fazia muito bem. Parecia um hobby, mas não era. Fui estudar e comecei a me interessar pelas cidades como um caminhante que gosta de fazer perguntas.
Por que caminhar é tão importante?
O pé é o maior meio de locomoção do Brasil (36%), seguido pelos transportes coletivos (29%), automóveis (27%) e motos (4%). Caminhar é um momento de você estar presente no aqui e agora. É transformar o que é banal em uma aventura, como preparar um bom prato, por exemplo. É um jogo de erro e acerto, como a vida. Andar a pé é uma das atividades mais básicas do ser humano.
O que as caminhadas revelam?
Revelam temas da cidade, instigam a pensar um jeito melhor de viver em conjunto nas cidades. Para isso é preciso nos aproximarmos dos espaços públicos de convivência, nos relacionarmos mais com as pessoas nas ruas, fazer piquenique nos parques, sentar nas praças e explorar toda a diversidade. Caminhar é uma forma de se conhecer e conhecer melhor o outro.
O que você descobriu sobre o caminhar?
Caminhar é universal, é um dos grandes temas implícitos e não discutidos. Desde que descemos das árvores e começamos a caminhar, tudo é caminhar. É atividade estruturadora de morar em cidades, em aglomerações. Se formos pensar antes dos transportes, a humanidade inteira só andava a pé, talvez até o final do meio do século XIX quando surgiu trem, carro, bicicleta. Tem uma grande história de confronto e de acessibilidade.
E por que pouco se fala no tema?
É um tema não discutido, talvez porque seja tão natural. Você não pensa para andar, para ir até a sala ou cozinha; você também não discute respirar. Só que essa naturalidade é enganosa. Quando você cria uma cidade, cria barreiras que já não são tão naturais, portanto é preciso reconstruir o trajeto. Na cidade, andar uma necessidade, mas infelizmente ainda temos a invisibilidade cultural do pedestre.
Que tipo de barreiras?
São barreiras urbanas como uma passarela, por exemplo, que dificulta para o pedestre. Você faz o ser humano que anda e que está mais fragilizado a subir, descer, atravessar. O caminhar do pedestre é prolongado para facilitar o carro que tem motor e anda na via mais natural. Trocamos a ordem das coisas. Foi o andar que me fez pensar a cidade, pensar a história da cidade e entrar na questão do urbanismo e dos espaços públicos.
Hoje temos muitos condomínios e as crianças quase não andam a pé, não é natural, certo?
Depende de que estrato social estamos falando. No Interior de São Paulo, todo crescimento urbano está baseado em condomínio.
Em São Paulo, crianças de classe média baixa vão a pé para a escola, qualquer caminhada até 2 km é bastante possível. Como hábito cultural, temos um risco. Crianças que não andam mais nas ruas, em grupo, perdem a iniciativa e, mais importante, o jogo do aprendizado da cidade. Isso inclui aprender que lugar é perigoso, como se relacionar como estranho.
E a questão do medo, da violência das ruas?
Temos dois aspectos. Há o medo real em São Paulo e outras cidades com violência, roubo de celular, trânsito. Corremos risco de sair de casa, mas tem também um outro aspecto que é um temor de quem não usa, mas acha que é ruim. Em alguns lugares, próximos de sua casa, pode não ser particularmente perigoso. Existe o risco de ser atropelado assim como existe o risco de ser assaltado, a gente tem que desenvolver estratégias públicas e individuais para lidar com isso.
E como garantir mais segurança?
É preciso criar estratégias: tomar cuidado e atravessar na faixa, não andar no escuro, não usar celular. É uma forma de evitar o medo do medo. Quando você mora em um lugar bom de andar, você já conhece. Como vivemos em bolsões, quando mudamos de bairro, em algumas regiões é bom evitar se expor. Em lugares cotidianos você consegue andar sem nenhum problema.
Observar a cidade é um exercício?
O tema da minha tese de doutorado é o duplo andar, o andar de quem precisa chegar em algum lugar e o de quem observa o caminho. Caminhar também pode ser um estado de espírito, tem a ver mais com a sua disposição e o tempo disponível do que com o lugar. Com pressa muitas vezes você não observa, sem pressa começa a ver coisas, um novo bar, pessoas na passagem. É um exercício para se fazer só ou com poucas pessoas.
O que muda com a observação mais atenta?
Muda a sensibilidade para o olhar. Entrevistei pedestres para minha tese, pessoas que vão trabalhar ou pegar um transporte que têm reações filosóficas diante da vida. Andar pode ser o momento único no dia em que está sozinho, e aquele momento faz você sair da faina diária de fazer, entregar, produzir. O caminhar poder ser como um ritual, se você der o peso que dá às coisas em si.
E os benefícios físicos?
O andar também estimula a parte física, e olha que nem estou falando em termos de exercício com efeito vascular significativo.
Há um estudo norte-americano muito bom que mostra que alunos que andam a pé para ir à escola, e não são levados pelos pais, chegam com um grau de atenção maior, já acordaram, vão pensando, tomando decisões no caminho.
O que é caminhabilidade?
É uma disciplina que está ligada à melhoria das condições do caminhar, do andar a pé, gente, crianças, gente de cadeira de rodas, qualquer grupo. Como é importante garantir que o acesso para estações de transporte seja melhorado. O andar a pé é o que garante capilaridade para que a rede de transporte de massa consiga desaguar e as pessoas consigam chegar às suas casas. Do metrô, trem, ônibus, aplicativo, tem várias fases.
E como entra a tecnologia?
O pé é o alimentador da rede de transportes. Não dá para pensar na conexão dos transportes sem o pé. As rodovias cortam cidades, tudo se encaixa. Eu vejo todo mundo ligado na alta tecnologia e novas soluções, mas sem a baixa tecnologia como as calçadas, os sinais ou o meio fio, você não alimenta a alta tecnologia. É importante pensar nessa complementariedade.