Há anos, a arquiteta e artista plástica Renata Bueno faz um paciente trabalho de escuta de idosos em asilos, casas de repousos, oficinas, pequenas vilas. Foto: Arquivo Pessoal
Estilo BE
Estilo BE entrevista Renata Bueno
Há anos, a arquiteta e artista plástica Renata Bueno faz um paciente trabalho de escuta de idosos em asilos, casas de repousos, oficinas, pequenas vilas. Renata vai até eles, ouve suas histórias enquanto os retrata em tinta da china. Dessa escuta atenta, inspirou-se para criar o livro “Manuel, Rita, Flor…”, da Companhia das Letrinhas, lançado esta semana.
“Perdi as contas de quantos desenhos já fiz, tenho pastas e pastas com retratos e nomes de pessoas que contam um pouco de minha vida também”, ela diz nesta entrevista exclusiva para a coluna Estilo BE:
É um livro para crianças?
A obra ilustrada é indicada para crianças e adultos, traz 19 pequenos perfis, um delicado inventário de velhices diversas, fragmentos do que fazem, gostam, vivem, contam, lembram e também do que esquecem ou do que não é dito, não expresso. A proposta é unir as duas pontas da vida, crianças e velhos, compartilhando histórias de cumplicidade e afeto. Acho que quando crianças gostamos de pessoas que nos ensinam, que nos fazem sentir bem ou que admiramos, independente da idade que tem.
Quando começou a se interessar por velhos, desenhar velhos? Por que?
No Brasil, eu participava de um grupo de artistas e desenhávamos modelos vivos. Sempre que ia a Dona Vera (uma modelo incrível que já tinha na época uns 60 anos) eu adorava. Em 2009, eu morava no Largo do Arouche, em São Paulo, e encontrei um lar de idosos ao lado de minha casa. Comecei ir lá e fazer os primeiros retratos. Na época, usava mais grafite e bastão de óleo. Lembro de um senhor que, enquanto eu desenhava, tocou violão, e de uma senhora que ficou muito brava quando terminei o desenho e disse que aquela não era ela, mas sim a sua mãe.
Você conviveu muito com velhos na sua família?
Tenho muitas saudades de minha avó materna, as lembranças com ela são muitas… Com meu avó paterno não tive uma relação de muita troca, mas tenho lembranças táteis de sentir a textura de seus cabelos brancos, com ele que descobri o alfabeto braile dos cegos. Ele era cego e eu num Natal fiz uma carta em braile para lhe oferecer de presente. Meu avô materno eu me lembro pouco, infelizmente, mas adoro ouvir histórias sobre ele. Minha avó paterna eu não conheci, mas chego a sonhar com ela.
Nesse seu trabalho, como foi a experiência de entrar em contato com solidão, descaso, sofrimento, abandono dessas pessoas?
Sim, a solidão está presente, o descaso, o abandono… Isso claro, mais forte no Brasil, mas também de alguma forma na Holanda e em Portugal.
Mas é possível aprender tanto… Quando paramos para olhar, para sentir e ouvir, ganhamos de presente histórias. Vidas que nos fazem perceber a importância de estar vivo.
Trabalhar e criar com o tema, ajuda a entender e não temer a velhice?
Cada vez quero conhecer mais pessoas com rugas e histórias para contar. Não temo a velhice. Temo a doença e a morte. Quero ter o privilégio de ser velha e me desenhar no espelho um dia.
Por que a mesma obra para adultos e crianças?
Os idosos, assim como as crianças, experimentam a suspensão temporal da espera, onde a narrativa tem força de verdade e o real se mistura ao inventado, como num grande quintal, sempre ocupado por aqueles que não são (mais ou ainda) produtivos como se espera em nosso mundo contemporâneo.
As crianças de hoje têm mais dificuldades em lidar com os velhos, já não têm paciência para ouvir histórias, o celular e computador atrapalham muito a relação com os avós. O que recomenda?
Eu acho que precisamos dar o exemplo. Não podemos falar das crianças se nós mesmo não temos paciência para ouvir histórias de alguém mais velho. Fui co-realizadora de um filme chamado “Carpinteiro de Papel”, que conta a história de um senhor que com 81 anos que morava num lar de idosos, recortava embalagens de medicamentos e criava personagens. Um verdadeiro artista que me inspirou e inspirou crianças que viram o filme, assistiram à matéria na televisão. Valorizar os velhos faz com que crianças, adultos e outros velhos também possam dar o devido valor.
Podem ver o Trailer aqui – https://pracafilmes.pt/pt/saborear/838
Unir crianças e velhos funciona?
Não tenho dúvidas. Existe uma distância temporal, mas também uma sabedoria poética que une esses polos e nos faz acreditar que coisas tão simples como fazer bolhas de sabão são importantes em todas as fases da vida.