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‘Meu sonho é um país mais igual’
O doutor Gonzalo Vecina Neto sempre foi uma voz importante e referência na saúde pública do Brasil. Médico respeitado e admirado pelo conhecimento, experiência e seriedade, durante a pandemia orientava com didatismo e transparência para o que acontecia no mundo e no Brasil. Acho que eu, como muitos, não se sentiram tão sozinhos nesse período difícil, por contar com sua fala tranquila e verdadeira. Nesta entrevista exclusiva para a coluna, ele aborda vários temas, inclusive o envelhecer, e diz que não quer ser olhado como uma “vaca sagrada”. Seu sonho na saúde pública para o Brasil é ter um país mais igual para todos. Confira!
Seu currículo impressiona, pode destacar alguns pontos?
Fui Secretário Nacional da Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, Diretor Presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Secretário Municipal de Saúde de São Paulo, Superintendente do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e do Mestrado Profissional da Fundação Getúlio Vargas.
Onde nasceu e como chegou na Medicina?
Nasci em Sorocaba e logo que terminei o científico escolhi a Medicina, prestei vestibular, entrei e cursei a Faculdade de Medicina de Jundiaí. Eu nunca pretendi fazer uma especialidade cirúrgica, fui para o lado da clínica e me interessei muito, já no segundo ano, pelo conhecimento da Epidemiologia, dos eventos ligados à doença, à morte, entre outros. Uma das poucas coisas de que eu me arrependo na vida é de ter abandonado a clínica e ter me dedicado à Epidemiologia e gestão, mas não tem retorno.
A vida teria sido diferente?
Talvez, mas tive boas oportunidades, mesmo deixando buracos para trás, como não terminar meu doutorado, por exemplo. Fiz o mestrado e o Doutorado na Faculdade de Saúde Pública, fui aceito e apresentei meu projeto de tese para uma banca em 1997, mas em 1998 fui para a Anvisa, depois para a Secretaria Municipal de Saúde em São Paulo, acabei perdendo todos os prazos para entregar a minha tese. Eu desisti, gosto de dar aulas, mas não quis fazer carreira acadêmica.
Os jovens alunos de Medicina são interessados?
A melhor turma no meu ponto de vista é sempre a última, eu gosto de alunos, acho que eles querem aprender, eu não tenho preocupação com essa geração. Dependendo de como você transmite o conhecimento e tem um bom discurso, eles se envolvem. Na Faculdade de Saúde Pública também dou aulas de Política e Gestão de Saúde para todas as residências multiprofissionais do Hospital das Clínicas, são 170. Tenho limitações pessoais e não uso PowerPoint, mesmo em aulas remotas, tenho dificuldade para trabalhar com computador, nem quero aprender.
E como são suas aulas?
E só utilizo minha capacidade teatral e isso exige uma postura um pouco diferente na relação com os alunos. Alguns professores só ficam passando slides, eu tento tornar o mais interessante possível a minha fala e a minha aula. E acho que tenho razoável sucesso. Tenho usado o Ensino Baseado em Times, em que os alunos em grupos produzem o conhecimento com perguntas e respostas uniformizada. É uma ferramenta ainda pouco utilizada no Brasil.
Qual é a sua definição de saúde?
O conceito de saúde é mais difícil do que o de felicidade. O que todos sabemos é que saúde é a ausência de doença, mas não existe a saúde cheia, existe um estado em que você acredita que tem uma vida saudável, mas você sabe que pode ter problemas com o envelhecimento e o que faz parte dele. Existe um substrato biológico que é muito difícil de definir. Você já nasce envelhecendo e o processo não tem melhoria, não é como o vinho, não tem saída, você vai tratando cada hora uma coisa que aparece.
Envelhecer está difícil?
Não é fácil. Envelhecer é perder capacidade, portanto é um contínuo desenvolvimento de adaptações. Depende de sua capacidade de se adaptar sem se entregar, você renuncia a algumas coisas e coloca outras no lugar. O que mais me preocupa é como as pessoas enxergam você dentro do processo de envelhecimento. Você passa a ser olhado como uma “vaca sagrada”; segundo, se você se apresentar para fazer alguma coisa e tiver alguém mais jovem, esse será o escolhido, acho que eu faria isso também.
Tenho lido notícias sobre o aparecimento da Covid de novo. Nunca mais vamos nos livrar dela?
Exceto se descobrirmos uma vacina que seja perene, como a do sarampo, por exemplo. Sem isso não tem jeito, ela veio para ficar. Hoje temos cem números de variantes, todas Ômicron, até o momento. A vacina nos defende de uma boa parte do vírus, mas deve ser atualizada. As mutações são um evento probabilístico. A variante nova que está aparecendo não mudou, a infectividade é elevadíssima e a letalidade é baixíssima. Talvez a questão mais evidente dessa variante nova é que quem já teve pode vir a ter de novo, mas se tiver vacinado terá uma proteção elevada contra doenças graves, principalmente os públicos mais expostos e frágeis.
O senhor teve Covid?
Eu já tomei a minha sexta dose e não tive Covid até agora, pelo menos que eu saiba, o que não significa que eu não tenha tido. Tomo cuidado relativo. Principalmente em voos, uso máscara antes de ligar o motor do avião, quando começa a taxiar, e na hora que ele para. Nesses dois momentos, o sistema de ar-condicionado, e sem os filtros por barreira você fica submetido à estrutura viral do ambiente. Durante o voo eu tiro a máscara. Em ambientes muito cheios ainda é recomendado bom senso. Temos que aprender a conviver com esse vírus, com os que continuam circulando e com os que virão.
As empresas estão cuidando bem da saúde dos funcionários?
Uma das principais causas da crise da saúde privada no Brasil é porque os empresários não dão bola para assistência médica de seus trabalhadores. Eles não compram saúde, compram um benefício; da mesma forma que entregam o desconto na creche ou o vale alimentação, entregam um vale saúde. Os empresários fazem o obrigatório por lei chamado saúde do trabalhador, que não tem nada a ver com a saúde do empregado.
Como assim?
Se o funcionário tiver burnout, câncer, lesão ou intoxicação ligada ao trabalho importa, mas se tiver um câncer de próstata não interessa. Qual a diferença entre um câncer de próstata e uma doença profissional? Nenhuma, as duas podem ser letais. É preciso uma visão única que exige pensar na assistência à saúde do trabalhador. Se nós não conseguirmos gerar um modelo que integre saúde do trabalhador com assistência à saúde geral, não há como controlar a sinistralidade.
O que é importante no exercício profissional?
Não adianta o médico indicar um monte de exames e não escutar o paciente. Ao escutar vai fazer um prognóstico, terá uma hipótese e vai dizer o que interessa, falar do tratamento e das opções. Não é fácil essa comunicação. Os bons médicos sabem lidar com a morte, com a psique humana e têm o compromisso de não mentir e não agredir o paciente, é relação de confiança.
Sonho dentro da saúde pública para o Brasil?
Depende de uma pré-condição. Não vejo a possibilidade de ter a saúde pública com a qual eu sonho sem ter a educação, sem a alimentação, a segurança. O desenvolvimento de uma sociedade civilizada é um todo. Meu sonho é um país mais igual para todos.