Nacional
“O agente marítimo não sabe o poder que tem”
Entrevista de 4a
Entrevistado: Marcelo Neri, presidente da Federação Nacional das Agências de Navegação Marítima (Fenamar) e vice-presidente regional eleito das Américas da Federação das Associações Nacionais de Fretadores de Navios e Agentes de Navegação (Fenasba)
O agenciamento marítimo brasileiro volta a se destacar no cenário mundial. O presidente da Federação Nacional das Agèncias de Navegação Marítima (Fenamar), Marcelo Neri, foi nomeado para ocupar a vice-presidência regional das Américas da Federação das Associações Nacionais de Afretadores de Navios e Agentes de Navegação (Fonasba, na sigla em inglês), a entidade que representa a categoria globalmente. Neri substitui o brasileiro Waldemar Rocha Júnior, que teve de deixar a função na Fonasba por problemas de saúde.
Marcelo Neri foi anunciado como o novo vice-presidente regional das Américas em março deste ano, mas só tomará posse no cargo no próximo mês de outubro, em reunião da entidade na Jordânia.
Para o executivo, sua indicação é uma prova da importância do Brasil na cadeia de suprimentos e na logística marítima mundial. Na nova função, ele pretende ampliar a presença da Fonasba no continente, quer resolver desafios crônicos da categoria no País – como o polêmico entendimento da Receita Federal de que o agente tem responsabilidade solidária sobre eventuais erros do armador – e fomentar parcerias para programas de treinamento e qualificação profissional. Confira mais detalhes sobre os planos e as prioridades de Neri como integrante do comitê executivo da Fonasba na entrevista a seguir.
Presidente, o sr. foi eleito como vice-presidente regional das Américas da Fonasba, a Federação das Associações Nacionais de Fretadores de Navios e Agentes de Navegação, o órgão mundial que representa essas categorias. Como foram essa indicação e escolha para o cargo?
A minha escolha ocorreu, primeiro, devido ao que eu venho fazendo (como presidente da Federação Nacional dos Agentes de Navegação Marítima, a Fenamar). Mas é principalmente porque, hoje, o Comitê Executivo da Fonasba não queria deixar o Brasil de fora (da direção da entidade), por ser um país importante nessa cadeia global de suprimentos, principalmente na parte do agronegócio. Então temos o País como um representante importante na cadeia do comércio exterior e havia uma substituição de nomes. O Waldemar (Rocha Júnior, que ocupava a função de vice-presidente regional das Américas), que me antecedeu, estava saindo e teria de ser trocado. Eles poderiam ter trocado por um representante de outro país, mas decidiram continuar com o Brasil. E acharam que eu era propício, até por conta de ser uma pessoa jovem – tenho 51 anos – e que teria gás para representar as Américas no comitê.
O sr. foi indicado ao cargo e essa indicação foi aceita. Mas quando será a posse oficial?
Sim, eu fui indicado, meu nome foi sugerido, mas ainda tenho uma oficialização. Ela será em outubro, na reunião que faremos na Jordânia. O comitê executivo da Fonasba, que é quem toca as coisas da entidade, é formado pelo presidente, o vice-presidente e os vice-presidentes regionais. E são todos juntos que decidem dar o aval para a escolha (de um novo integrante do órgão), que depois é oficializada por todos os membros associados da Fonasba e nossos parceiros institucionais. Eu já estou atuando, já estou no cargo. Será mais uma formalidade.
Atualmente, qual o principal papel da Fonasba? Por que é tão importante ter o Brasil no comitê dirigente dessa federação internacional?
As entidades de classe têm um papel estratégico. Eu costumo dizer que elas auxiliam muito na produção de riquezas. Cada empresa, especialmente as de médio e grande porte, sempre investem em seus quadros. E as entidades de classe fazem isso em um âmbito coletivo, liderando toda a categoria. Elas trazem os empresários, os gestores, os líderes, as empresas para um mesmo espaço, para troca de informações, para o network. E as federações têm sempre uma maior presença perante um governo. Quando a gente leva uma questão a um governo, ele sempre vai te perguntar da sua representatividade, sobre quem é você e quantas empresas você representa. E a gente tem de demonstrar nossa força. Por isso mesmo uma das minhas funções enquanto RVP (sigla de vice-presidente regional em inglês) é angariar novos associados. E a Fonasba, enquanto entidade de classe, não é apenas uma federação. Ela também integra órgãos mundiais e continentais, como a IMO (a Organização Marítima Internacional, agência da Organização das Nações Unidas) e a Cianam (a Câmara Interamericana das Associações Nacionais de Agentes Marítimos). Por exemplo, agora uma ação que tive foi ajudar a associação peruana. Eles me pediram ajuda pois estão com um sério problema de roubo e pirataria no Porto de Callao. Muito roubo e muita pirataria de navios na barra do porto. Então nós fizemos uma carta em conjunto para que eles levassem ao governo, pedindo que algo fosse feito o mais rápido possível, afinal tem uma federação mundial aqui pedindo urgência. Não é mais uma entidade nacional falando sozinho, mas é uma entidade nacional tendo ao lado um organismo internacional, ligado a outros órgãos internacionais. Isso já toma uma outra dimensão. Veja que a minha missão aqui na América, enquanto vice-presidente regional, também é proteger os interesses profissionais dos brokers de navios e dos agentes marítimos, é garantir que a visão deles chegue nos altos escalões da indústria marítima.
E quais seus principais planos como vice-presidente regional das Américas? O sr. já identificou quais as demandas que tentará resolver?
Tem algumas. Primeiramente, eu tenho algumas reuniões marcadas com alguns países membros. Minha primeira ação é escutar os membros, escutar as federações das associações e conhecer seus problemas. E aí vou fazer minha lista de prioridades. Fora isso, a minha plataforma é formar um benchmarking internacional para um benchmarking mundial, de melhores práticas. Na Fonasba, nós temos uma plataforma, um banco de dados com mais de 200 portos, onde você tem informações de todos os portos para os agentes marítimos. Todos os membros podem acessar essa plataforma. E você tem lá (informações sobre) problemas e também as melhores práticas. E uma das ações que quero desenvolver é melhorar essa plataforma, especialmente com as melhores práticas. Com isso, vamos ver o que cada país tem. Eu já estou nesse ramo há algumas décadas. E eu vejo que os problemas (dos portos) não são muito diferentes, tanto no âmbito de agenciamento marítimo, quanto no âmbito de shipbrokers. E quando a gente fala de agenciamento marítimo, de shipbroker, a gente fala também de logística portuária. A gente observa que o mesmo problema que a gente tem no Brasil, a gente vê em outros países. É lógico que se vê soluções mais modernas. Então essa é minha principal meta: estudar os problemas, ver o que os portos estão fazendo e levar para a Fonasba, em termos de Américas, os problemas e as melhores soluções. E assim fazer um combinado disso tudo para chegar num denominador comum de benchmarking das melhores práticas. A divisão é um dos grandes sofrimentos do ser humano. Eu acho que a unidade, a união é o que se tem de melhor.
Para conhecer as demandas dos outros países americanos, o sr. disse que fará reuniões com as entidades dessas nações. Mas os problemas brasileiros o sr. já conhece. Que demandas do agenciamento brasileiro o sr. pretende levar para debater na Fonasba?
Há algo que já temos observado, estudado e que, para o agenciamento marítimo, é o nosso calcanhar de Aquiles. É a questão da Receita Federal, das multas da Receita em cima da categoria (por supostas irregularidades cometidas pelo transportador marítimo ou pelo armador que representa). Ainda se confunde muito a pessoa jurídica do agente de carga com a do agente marítimo. E eu venho trabalhando nisso muito. Com a Fonasba, quero trazer como os países europeus tratam os agentes marítimos. Se não me engano, só a Itália tem a figura do agente marítimo como uma categoria regulamentada. Então eu começo a pensar se, aqui no Brasil, não seria o momento de se regulamentar a categoria. Seria como ocorreu com a entidade estivadora com a Lei 8.630, de 1993 (a então Lei de Modernização dos Portos). Só com a regulamentação conseguida com a lei, a gente traz a entidade estivadora para a luz do governo e então se forma o operador portuário. Mas o agente marítimo ainda é uma figura na “gray area” (área cinza). Mas ele é uma figura muito participativa (na operação portuária). Tanto é que alguns atores aí me procuram para debater o Port Community System, dado o conhecimento que o agente tem da operação, de estar presente em todos os momentos. Eu costumo dizer que o agente não sabe o poder que tem.
Como assim?
Por muitos anos, a gente talvez tenha sido uma categoria subvalorizada. Na verdade, nós não somos tão importantes em termos monetários na cadeia de suprimentos, no comércio exterior. Mas é um ator no comércio exterior muito importante em termos de informação, porque assume um papel catalisador. Então, com o agente, você tem as informações desde a origem da carga até o destino do comprador. E dessas informações, você pode produzir muita riqueza. O agente marítimo passa por uma transformação. Eu tenho dito isso dentro da Fenamar. E esse é um dos pontos da minha plataforma. E tenha a questão midiática – eu tenho levado o agente para a mídia. E com a tecnologia com que a gente está vivendo, você deixa de ser um pouco aquele ator que ficava no costado do navio, liberando serviços com as autoridades, e passa a ser um consultor de inteligência de mercado.
Considerando alguns desafios atuais do setor de navegação, há várias legislações, especialmente na Europa, determinando uma redução na emissão de poluentes, a partir da queima do combustível da embarcação durante a navegação. Como está essa questão no continente americano? Os projetos envolvendo, no Brasil, o hidrogênio verde e o gás liquefeito de petróleo (GLP), já utilizado como combustível naval no continente europeu, podem ter qual impacto nesse cenário?
Eu tenho a missão de reportar essas questões para o comitê executivo. E veja que o comitê não é formado por europeus, mas ele praticamente tem um olhar europeu. E a gente discute lá que essas questões ainda vão demandar um tempo no Brasil. Aqui, esse será um debate de longo termo. E mesmo nos Estados Unidos, também não será algo rápido. É nós, como federação mundial, estamos totalmente a favor dessas restrições e da redução das emissões de poluente.
A partir do momento em que a Europa determina prazos para que essa legislação seja efetivada, a adoção dessas regras no continente europeu não acaba afetando e levando essas regras para outros países?
Eu acho que sim, principalmente quando a gente trata de convenções internacionais. E nesse momento, você começa a ter de adotar essas novas práticas ou, caso contrário, você pode ser retirado do mercado global. Mas isso ainda vai demandar um tempo para acontecer. E será como as certificações. O Governo não irá te obrigar a ter essa certificação. Mas o mercado vai te obrigar e, no dominó da cadeia corporativa, o seu cliente vai exigir que você tenha. Eu sou um pouco cético em relação a mudanças nas atividades apenas por questões ambientais. Não acredito que o setor de navegação vai mudar algo apenas por um critério ambiental. Mas certamente isso ocorrerá quando a parte econômico-financeira perceber que algumas medidas ambientais reduzem custos ou ampliam a eficiência. Aí sim, essas medidas vão ser implantadas. Não sou ingênuo de achar essa questão de que o lucro vai ser minimizado por uma questão ambiental mundial.
Então as regras ambientais são implantadas a partir do momento que elas são incorporadas ao modelo de negócios?
Exatamente. Quando você tem a justificativa econômico-financeira, aí você assimila com maior facilidade.
Durante a entrevista, o sr. citou o Port Community System, plataforma digital que busca reduzir o tempo das operações portuárias, principalmente o tempo necessário para o despacho das cargas de comércio exterior. A implantação desses sistemas é uma bandeira da Fonasba, que até participa da Associação Internacional dos Port Community System. No Brasil, chegou a ser estudada a instalação dessas plataformas, mas parte dos projetos foi interrompida. A Fonasba pode ajudar a desenvolver esse sistema?
No Brasil, eu vejo o Port Community System em uma área com um ponto de interrogação. O Governo sem capital para investir, algumas entidades privadas tentando fazer alguma coisa. Enfim, eu vejo a coisa ainda bastante solta.
Solta ou quase abandonada?
Vamos dizer solta para não utilizar abandonada. Às vezes, um ou outro vêm querendo pegar o PCS como uma oportunidade particular. Mas está claro que precisamos de capital para a implantação do sistema.
Diante da demanda de recursos para esse projeto, qual a melhor forma de implantá-lo então? É ter à frente o poder público, para custear o desenvolvimento da plataforma? Ou organizar a comunidade portuária e essas empresas assumirem os custos?
Eu nunca me dediquei a isso, a refletir sobre isso. Mas eu não vejo uma solução melhor do que uma parceria público-privada. E temos de ter o agente público envolvido. Ele tem de estar no projeto, seja uma autoridade portuária ou outro órgão. E também deve ter a iniciativa privada, o agente marítimo, o operador portuário. E ainda deve ter o capital financeiro, uma vez que sabemos que o poder público não tem recursos para isso. Mas ele pode tomar a dianteira, ser o líder.
Dos projetos desenvolvidos pela Fonasba, qual você pretende desenvolver nos países americanos?
Lá temos o Maritime Educational and Training Course Search, um banco de dados sobre cursos e treinamentos desenvolvidos para o setor. Eu sou muito adepto a programas de profissionalização e evolução dos quadros das agências. No Brasil, infelizmente, nós não temos uma grande tradição em cursos para o mercado de shipping (navegação). Então vejo que seria uma grande oportunidade trabalhar com a Fonasba e desenvolver parcerias, mesmo internacionais, com esses programas de treinamento.