77 anos para nos salvar
Acordei assombrado. A ONU alerta que perderemos nossas praias, nossas vidas à beira-mar. Sinto um torpor ao longo do dia. A sensação térmica em minha cidade costeira chegou a 43 graus. Isso fez com que o alerta me inquietasse, olhando para o mar. O que será do planeta e da minha sacada de primeiro andar logo ali, ao findar deste século?
Sei que já não estarei vivo, mas minha filha, espero que sim. E meus netos que provavelmente ganharão vida. E os portos, nossa economia? A roda que gira e nos alimenta?
O secretário-geral da ONU, António Guterres, que me parece sempre sensato, alertou esta semana perante o Conselho de Segurança que poderemos viver um ‘êxodo de proporções bíblicas’. Quase 900 milhões de pessoas, uma em cada dez do planeta, seriam refugiadas.
O aumento do nível do mar causado pelo derretimento das geleiras, a expansão dos oceanos pela elevação da temperatura e, agora, principalmente, o derretimento das calotas polares ameaçam países inteiros como China, Índia e Holanda. Impactos severos atingiriam Xangai, Copenhague, Londres, Los Angeles, Nova Iorque, Buenos Aires e tantas outras.
Percorro aflito a notícia para ver se menciona Santos e meu Brasil. Sei que nem é preciso, com nossos sete mil e quinhentos quilômetros de costa. Salvar-se-iam as falácias! Mudo para Trancoso?
Os especialistas do painel sobre mudanças climáticas da ONU acusaram um aumento de 15 a 25 centímetros entre 1900 e 2018. E esperam crescimento de 43 centímetros para 2100, caso a temperatura se eleve em míseros 2 graus em comparação à era pré-industrial. Se esquentar então 3 ou 4 graus, o mar subirá 84 centímetros até o fim do século que, convenhamos, é logo ali.
A distância do tempo não me engana. Sou de meados do século passado, do outro milênio. Cresci ouvindo metas para quando chegasse o ano 2000. Torci e cantei em 1970 quando nossa seleção comemorava ’90 milhões em ação/pra frente Brasil…’ Hoje somos 210 milhões, algo assim.
James Webb, o supertelescópio, mostra a relatividade do tempo e do espaço enquanto a paleontologia soma cada vez mais milhões de anos à nossa existência. Como não me preocupar com meu andar? Com minha praia, com minha cidade?
Em 77 anos, o maior porto da América Latina, que nasceu em trapiches há quase cinco séculos, simplesmente desapareceria. Meu mundo submergeria e viraria história.
Fico refletindo sobre a logística do impacto do tempo. É certo que nada disso aconteceria em um único momento, apesar de se antever aumento de temporais e inundações. Os quase 900 milhões de caiçaras iniciariam um êxodo para áreas mais altas, serras acima. E veriam surgir novas praias, novos portos…
De qualquer maneira essa ‘proporção bíblica’ a que se refere Guterres é apavorante. Remonta à barca de Noé!
Sentado em minha sacada à beira-mar, fico tentando visualizar até onde chegaria a maré. Bobagem a minha. Minha terra já foi um grande charco, em que metade da população morreu na virada do século 19 para o 20, vítima das condições insalubres, com doenças trazidas pelos mesmos navios que carregam riquezas. Santos, e tudo mais aos pés da Serra do Mar, vive essa ameaça. Fico lamentando minha família haver se desfeito, nos anos 60, de um sítio em Ribeirão Pires, onde todo fim de tarde baixava uma neblina da qual sinto saudade neste dia de 43 graus.
Diante de tudo que se pode perder, vidas, empregos, comida, mais sensato é mesmo reforçar nossos esforços contra o aquecimento global.
Um grau e meio é um número infinitamente menor que 900 milhões. E certamente não quero ver meus descendentes subirem a serra e um dia contarem como era minha terra querida, que tinha um porto próspero, mas um dia, por tanto usarmos energia fóssil, queimaram nossos sonhos.