A ceia da fé e da esperança
Os últimos suspiros do ano são como os da vida, quando se sabe que vai morrer. Há uma alucinante pressa em fazer o que não fora feito, além de remover os escombros e partir mais leve para um novo tempo. Cheguei ao final do ano cansado mas feliz, e sou surpreendido com notícias tristes. Parece que o Universo também se dedica nestes dias a descartar algumas vidas.
O cansaço geral não impede a frenética agenda que a todos se impõe. Confraternizações se encaixam entre os últimos compromissos. Invejo a leveza dos copos de chope brindados entre tantos risos. Confesso, porém, que não me vejo nessa mesa. Minha excessiva concentração no sempre a fazer e nos problemas que todos têm me deixa pesado a ponto de não sustentar tantos brindes.
A maioria das pessoas, no entanto, age assim, festejando enquanto remove seus escombros. Há nas ruas montanhas de restos de móveis e bens inservíveis que custaram e foram úteis um dia. Os móveis são como os amigos provisórios deixados ao léu no fim dos ciclos da vida. Se bem que, justiça seja feita, alguns, como meu velho sofá, nos acompanham para sempre.
É sintomática a necessidade de reformar a casa ao final do ano. Renovar é repor baterias. Gastam-se elas como as de um celular. Na vida os elétrons são nossa fé e nossa esperança. Apequeno-me em meu próprio colo ao saber que dar cabo à própria vida parece ter-se convertido em epidemia nestes tempos de pós-Covid, internet, cyberbullying e agressão social.
A autopreservação é intrínseca à vida, não só dos humanos. Mas tento entender o trágico ritual que enluta a espécie. Às vezes o ato se faz com etiqueta, a bordo de um cruzeiro, se entregando ao mar. São centenas de casos no sonho em alto-mar. O exotismo me lembra Drummond quando diz no poema Morte no Avião: “A morte dispôs poltronas para o conforto da espera”.
Alguns se afastam do seu mundo familiar para poupar da última cena. E para isso se hospedam em hotéis. Tal é a frequência que hoje seus prédios têm as janelas cerradas. Ou se afastam de qualquer jeito, como o poeta Pedro Nava que saiu de casa aos 81 anos de idade e se misturou a prostitutas e travestis para usar seu 32 na cabeça. Há porém, quem pratique o último ato diante de plateia, anônima ou familiar, lançando-se do parapeito de um shopping.
Neste Brasil são mais de 12 mil casos de adeus eterno. E o que mais intriga e assusta é que 6.568 jovens tomaram a decisão fatal entre 2016 e 2021. Eram, na grande maioria, jovens entre 15 e 19 anos. Entre menores de 14 anos hoje é a quarta causa de morte. No Hospital Pequeno Príncipe, referência em pediatria, em 2022 os casos triplicaram em relação a 2019.
A esperança da vida que o novo ano sugere não pode camuflar a triste realidade. Um amigo sentencia: “Só nesse prédio da frente já contei 20 casos”.
Parece que muitos de nós não estão suportando a particular realidade. Falta-lhes a energia para as agruras? Será que somos cada vez mais seres toscos na resistência à vida, que não é só bela? Aliás até o belo pode ser fatal. Tempos atrás, depois de ser acometido de uma crise de arritmia em Paris, li a notícia sobre a Síndrome da Primavera, como chamaram o fenômeno de tantas pessoas passarem mal diante do esplendor da estação em Paris. Às vezes não resistimos nem ao belo quando nos sentimos tão distantes da possibilidade de fruir essa inebriante emoção.
Nestes dias que antecedem o Natal, é inevitável inventariar a vida, que também é feita de fracassos. Fracassar não é perder. É não haver lutado. Mas é preciso que haja ouvidos e força para admitir e começar de novo.
A fé é que nutre a esperança. Mas nem sempre ambas há. Alguns fazem da fé a tocha empunhada que ilumina o caminho. Outros não a conseguem conquistar e perdem a capacidade e o desejo de sonhar.
Há de se encantar com o milagre diário da própria existência. Por isso nestes dias celebramos o milagre da manjedoura, símbolo da fé e da esperança convertidos no existir de cada um.
Ah, quão efêmeros somos nós, sujeitos às intempéries do tempo, do humor ou da sorte. Para vitaminar nosso espírito devemos tomar fé como vitamina. Pode ser em um deus, nos astros ou em nossa própria capacidade de superar os desafios e sobreviver como beija-flor batendo desesperadamente suas asas.
Sim, o fim pode ser o começo. É quando a esperança sustenta a precária existência. Que os escombros sejam despejados na latrina da vida. E que a fé e a esperança se assentem à mesa para cear o novo ano.