A fragilidade da alvorada
“Nunca esquecerei sua resposta em tom crítico: ‘Olhe aqui, rapaz! Você está falando com o presidente da República! Este é o governador Franco Montoro, e este o líder do Congresso, Pimenta da Veiga! Eu já disse que a Constituição será cumprida!’. Seguiu-se um profundo silêncio só interrompido pelo som dos sapatos em marcha rumo ao carro presidencial”
No alvorecer diário arrumo a cama sem saber se viverei o crepúsculo. Loucura pensar no inesperado, ainda que previsível de acontecer um dia. Esticava o lençol, dobrava a cobertor que espero não necessitar tão cedo, e lembrei-me da noite em que fui deitar vibrando com a retomada da democracia no País, horas depois, com a posse de Tancredo Neves. Prova de quando o imprevisível se junta ao inesperado e me vi, de repente, à porta do Hospital de Base, atônito e deparado com o porvir.
As tragédias também possuem vésperas, muitas das quais não prenunciam a morte. Fora um dia intenso diante de tanta alegria nas ruas de Brasília, consagrando a campanha pelas Diretas Já, naquele 14 de março de 1985. Jantava com meus amigos e colegas Carlos Manente (então no Estadão) e Márcio Calves (por A Tribuna) e ao sabor de um vinho, organizávamos a cobertura do dia seguinte, logo cedo.
Precisávamos dormir, eu e Márcio, no apartamento funcional do então deputado federal Del Bosco Amaral. Mal adentramos à sala, Dodô, esposa do deputado, disse: “Corre!, corre!”, sob o som retumbante do plantão do Jornal Nacional.”O presidente eleito Tancredo Neves acaba de dar entrada no Hospital de Base”.
Poucos minutos depois, lá estávamos, ainda perplexos, em busca de alguma notícia. Foi quando chegou apressado o presidente em exercício Aureliano Chaves. Logo depois, deixou o hospital e eu lhe indaguei: “Presidente, como será amanhã?”. Ele, com sua estatura e poder respondeu secamente: “A Constituição será cumprida”. E eu insisti: “Haverá posse?”.
Nunca esquecerei sua resposta em tom crítico: “Olhe aqui, rapaz! Você está falando com o presidente da República! Este é o governador Franco Montoro, e este o líder do Congresso, Pimenta da Veiga! Eu já disse que a Constituição será cumprida!”. Seguiu-se um profundo silêncio só interrompido pelo som dos sapatos em marcha rumo ao carro presidencial.
Meia hora depois, já que do Hospital de Base nada vazava aos jornalistas, então em profusão, corremos para o Congresso para ligar para Santos e acertarmos com a então editora-chefe do jornal, Míriam Guedes de Azevedo, a deadline. Sobre o carpete verde do saguão da Câmara dos Deputados, um grupo se exprimia em torno do então deputado Freitas Nobre, que lia no pequeno exemplar da Constituição, o que era previsto numa situação dessa. Junto dele, alguns jornalistas da Globo e a então musa da posse, Cristiane Torloni.
Foi quando entendi a fala irritada de Aureliano, que simplesmente não sabia o que rezava a Constituição mas pretendia obedecer o rito. O que de fato não aconteceu, no entender de alguns constitucionalistas, para quem deveria ter assumido o presidente da Câmara, Ulysses Guimarães, e não José Sarney. Salvou-se de qualquer forma a democracia e o país continuou sua caminhada.
Não basta o inesperado, há de se esperar às vezes o imprevisível. Por isso não questiono se voltarei a deitar na minha cama após saborear o crepúsculo regado a vinho e viver uma nova alvorada.