quarta-feira, 18 de dezembro de 2024
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Luiz Dias Guimarães

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A viagem do cão

Era uma tarde serena de sol, perambulávamos pelo pequeno shopping na estação de trem de San Isidro, à beira do Rio Tigre, depois de comprar na catedral neo-gótica uma pequena imagem do papa João Paulo II acolhido nos braços de Nossa Senhora de Czestochowa, padroeira da Polônia, quando levou um tiro. O fervor artístico das freiras do convento portenho, autoras da obra, repousa há anos na minha sala. É a melhor lembrança que trago daquela viagem.

Ao contrário do imponente cão que exibia sua soberba na vitrine da loja de decoração. Era uma peça de 1 metro de altura, belo cão Cavalier King Charles Spaniel, sentado sobre as patas traseiras e as posteriores esticadas com uma bandeja, em trajes de mordomo. O Cavalier é espécie sempre associada à nobreza. Esse tinha a pompa disfarçada de serventia.

Levados pelo impulso e encantamento, compramos também a peça decorativa, que foi envolta em papelão. Não requeria grande esforço para carregar, já que era oca, de louça fina. Até que descemos na Estação Retiro, no centro de Buenos Aires, a longas quadras do nosso hotel.

O calor era intenso, o volume fazia-me caminhar com os braços abertos a meia altura, e já começava a brotar-me arrependimento. O suor escorria, nem o vento antártico da Bacia do Prata aliviava.

Dia seguinte, hora de partir, precisei de muita maestria para acomodar meu companheiro no avião,  para desgosto das comissárias de bordo.

Com tanto sacrifício, em hipótese alguma faria desfeita com o elegante cão, que não poderia ser humilhado no compartimento de bagagens.

Mas o pior estava por vir. Na chegada ao aeroporto de Guarulhos, eu já cansado de puxar as malas e carregar no colo meu lorde canino, fui intimado pelo funcionário da imigração a apresentar documentos, o que exigia dispor o cão no soalho. Foi o suficiente para suspeitar de ter ouvido um leve estalo. Comecei a lembrar onde estaria a cola, mortificado diante da hipótese do infortúnio.

Já passava da meia-noite, eu cansado e com fome, sonhando em chegar em casa e me refestelar na varanda, com as mãos totalmente dedicadas a uma boa taça de vinho. Mal sabia eu que era o ato final de uma tragédia, que nunca se anuncia.

Para entrar em casa era preciso buscar a chave que deixara escondida dentro da mala. E para isso só repousando no chão meu cão portenho. Mas, convenhamos, no estado em que já me encontrava seria pedir demais repousá-lo com a dignidade que o personagem requeria. Pronto! Foi o suficiente para que ouvíssemos sucessivos estalos que mais pareciam rajada de metralhadora.

Demorou até que eu pudesse me recompor e me estatelar na varanda, depois de juntar tantos cacos do elegante Cavallier e dispor seus despojos mortais na lixeira. Foi quando decidi nunca mais me render a exóticas compras durante viagem, especialmente se tivessem tão aparente requinte. Restou-me a discreta presença da Santa na minha sala. Essa sim serve ao meu clamor e, além de a mim, a si própria protege.

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TAGS cachorro cão Comportamento crônica limpeza urbana viagem

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