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Frederico Bussinger

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Água, chuvas, enchentes: Lições aprendidas… e a aprender

“Se tens que lidar com água,
consulta primeiro a experiência, depois a razão”
[Leonardo Da Vinci]

“As coisas estão no mundo,
só que eu preciso aprender…”
[Paulinho da Viola]

“A lição sabemos de cor,
só nos resta aprender”
[Beto Guedes]

Consta que, preparando-se para a viagem de imigração, em 1850, lembraram a Herr Blumenau que os xoclengues, habitantes da região escolhida, “eram muito violentos”.  Aportou em Itajaí (SC). Com 16 companheiros, subiu o Rio Itajaí-Açu com todo o cuidado; tomado também ao chegar à foz do Ribeirão Garcia, seu afluente, hoje centro histórico da Cidade.

Afastado dos assentamentos indígenas, o local lhe pareceu seguro. Edificaram. Plantaram. Colheram. Passado um tempo, como os “indígenas violentos” não deram o ar da graça, tomou iniciativa de se aproximar. O cacique os recebeu, em princípio desconfiado, mas sem hostilidades.

Com muito jeito, Herr começou falando das vicissitudes na Europa; das razões de migração para o Brasil; do “mal jeito” de terem se fixado “nas terras de vocês”…. e tal e coisa. Espantou-se quando o cacique o interrompeu: “mas aquelas terras não são nossas!”. Meio sem jeito, ousou perguntar: “então de quem são?

– “Das águas”, respondeu o cacique!

A história, daí em diante, é conhecida… e justificada com impressionante regularidade: uma primeira enchente ocorreu dois anos depois e, desde então, 101 registros em 172 anos. A cota recorde em 1880; a mais longa em 1911; a de 1983, mais lembrada pela extensão dos sofrimentos e danos, numa Blumenau então já fortemente industrializada. O recorde do Século XXI em 2008, enchente que destruiu berços e provocou a paralização do Porto de Itajaí por longo período; e a de 2023, que forçou a suspensão da tradicional Oktoberfest.

De igual modo, Porto Alegre enfrentou 12 principais cheias em 150 anos de registros: 1873, 1914, 1928, 1936, 1967, 1984, 2002, 2015, 2016, 2023, 2024; além daquela de 1941 (a maior, anteriormente), vivida por Mario Quintana que a expressou nos versos de “Reminiscências”.

Dificilmente o cacique ouvira falar de Da Vinci. Mas é certo que testemunhara ali inúmeras enchentes. Seus antepassados outras centenas ou milhares. Curioso é que Herr, químico e farmacêutico com formação sofisticada, se ouvira falar de Da Vinci, não se convencera de suas orientações.

Dito de forma mais direta: quem quer conviver com águas, tem que “negociar” com ela as condições! Mas, além dessa, há mais:

Da Vinci; experiências não faltam!

Só desses quase dois séculos de desastres, registrados, é possivel arrolar também como lições aprendidas:

  • Planos, projetos, obras são importantes; mas manutenção também. P.ex: ter 68 km de diques de proteção até 6 m de cheia, como o de Porto Alegre, mas que, na hora-H se rompe (abaixo de 5 m), bombas que não funcionam ou, pasmem, falta de vedação em algumas das 14 comportas (com contato ferro-ferro há vazamento) é inaceitável! Não?
  • De igual forma, não há espaço para improvisações quanto a planos de contingência.
  • Rios assoreados têm menor capacidade de vazão e transbordam de suas calhas com mais facilidade. Claro que devem ser desassoreados periodicamente. Mas por que não prevenir? P.ex: manter matas ciliares; evitar ocupações de áreas lindeiras e encostas (fonte maior dos resíduos).
  • Águas densas, com detritos, fluem com mais dificuldade. Se com pneus, colchões, moveis, geladeiras, com mais dificuldade ainda.

Enfim; os registros indicam que chuvas têm se tornado mais concentradas, o que amplia os impactos. Mas também indicam que temporais, trombas d´água, chuvas prolongadas, inundações sempre existiram. E são até previsíveis. Ué! Não fosse assim, de onde teria vindo a “experiência” do cacique?

Não dá, pois para, professoralmente, limitar-se a responsabilizar a “mãe-natureza” ou o “aquecimento global”. Tampouco apenas cobrar dos poderes públicos que, claro, têm responsabilidades. A população, a comunidade, a sociedade, que são as primeiras vítimas das catástrofes, também são parte do problema (no mínimo, de suas consequências): mas podem, também, ser parte da solução.

Em síntese: antecipação (eventos), prevenção (impactos), minimização (danos), socorro (afetados), restabelecimento (sistêmico); estratégia que requer planejamento e gestão, muito facilitada com a participação (de todas as partes envolvidas). Nós!

Vale lembrar que a Holanda, com metade do seu território abaixo do nível do mar, acumulou experiências e agiu ao longo dos séculos; particularmente a partir da grande catástrofe de 1953,  para conviver com as ressacas do mar, as chuvas intensas e os degelos. É inspirador saber que as mundialmente conhecidas flores holandesa e cerca de 70% do seu PIB são produzidos abaixo do nível do mar; não?

Mesmo com as maiores e mais sofisticadas medidas preventivas, todavia, catástrofes não são raras. E, também nesses casos, há exemplos inspiradores: New Orleans (Furacão Katrina, 23/AGO/2005); Japão (Terremoto e Tsunâmi, 11/MAR/2011); e New York (Furacão Sandy, 22/OUT/2012) se reergueram.

A par dos resgates e socorro às vítimas (óbvio, a prioridade-zero), e de ações para restaurar a rotina das pessoas, do funcionamento das cidades e da economia, a reconstrução do RS já está em pauta.

Verbas públicas, claro, são importantes. Iniciativas e empreendimentos privados, também. Mas seria frustrante, e um erro histórico, se tantas dezenas de bilhões de R$ fossem usados para simplesmente se reconstruir, da mesma forma, o que havia antes dessa catástrofe gaúcha … sob pena de, indesculpavelmente, negligenciarmos os ensinos do cacique, Paulinho da Viola e, principalmente, de Da Vinci.

Ah! Há subsídios; como o excelente “Repositório … para suporte à decisão“, da UFRGS!

Ao contrário; a catástrofe gaúcha também nos oferece (mais) uma oportunidade (obrigação, na verdade!) de transformar a ocupação dos espaços, as infraestruturas, nossas governanças … e a nós mesmos, na perspectiva de que volte a raiar um “sol de primavera”.

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