sexta-feira, 20 de dezembro de 2024
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Luiz Dias Guimarães

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Briga de galos à mesa

De grão em grão alguém lucra um montão. A guerra tem múltiplas dimensões. Muitas vezes a economia sobrepõe-se à ideologia. E o bom senso não se senta à mesa. Os valores são dolarizados – ou rublorizados para ficarmos no contexto de uma guerra insana, como todas. E na briga do mar com o rochedo, o marisco é quem passa fome.

Há um ano, com o beneplácito da ONU e da Turquia, Rússia e Ucrânia firmaram o acordo que permitiu a criação do Corredor do Mar Negro para exportação segura de grãos que alimentam boa parte do mundo.

Tanto Ucrânia como Rússia são importantes produtores de cereais, em parte vendidos aos povos com fome e pouco dinheiro. Centenas de milhões com boca aberta e estômago vazio. Esse corredor permitiu ao longo desse tempo a saída de 30 milhões de toneladas. E a retomada provocou a queda de 20 por cento nos preços dos grãos que estavam inflacionados.

Ao longo do ano de mar branco, por umas três vezes os russos ameaçaram romper o acordo. E agora parece não se tratar só de ameaça, sob a alegação de que a parte do acordo que beneficiaria os interesses de Moscou não estaria sendo cumprida. Aparentemente a tal parte seria a suspensão de sanções econômicas impostas pelo Ocidente que estariam desidratando o PIB russo.

No palco da retórica, Putin, cobrado pelos que passam fome, ainda fez pilhéria, dizendo que a Rússia estaria disposta a fornecer de graça os cereais aos necessitados. Mas que não seria muito, afinal a Ucrânia não estaria fornecendo aos africanos tanto assim.

O anúncio da decisão se deu após o ataque de drones navais à ponte que liga o continente russo à Crimeia. E um dia depois de anunciar o rompimento do acordo dos grãos, Moscou disparou mísseis e drones contra os dois principais portos ucranianos por onde saem os comboios.

A semana começou quente com o novo fato, apesar da banalização de uma guerra que já durou demais para o gosto de tanta gente. Em reunião em Bruxelas, onde há bons vinhos franceses, lideranças mundiais se reuniram para discutir novamente, como tem sido frequente que nem parece terem o que fazer em suas casas. E foi uma baita, porém diplomática chiadeira, pois ninguém quer uma guerra mundial.

Nosso presidente, na turma do deixa disso, disse que todos deveriam usar seu dinheiro contra a fome e a favor do meio ambiente, e não com armamentos. Ao que o primeiro-ministro português aduziu que isso é óbvio, mas ninguém gasta em armas porque quer (Será?). Em outras palavras, António Costa quis dizer que o comentário de Lula era papo de balcão de padaria.

O chanceler da Ucrânia fez um desabafo: os apelos para cessar fogo são cínicos e parecem dizer que ucranianos têm que aceitar que dói menos. Cínico por quê? Fico pensando sem saber os interesses que existem por trás, mas imagino quantos trilhões de Fuscas os fabricantes de armas já lucraram nesse perrengue.

A mesa semanal dos grandes líderes tem cardápio cheio. No próximo mês o Brics se reúne em Joanesburgo, onde sei que há bons vinhos. Só não vi na agenda nada para acontecer na Somália, onde há fome e é logo ali, no mesmo continente. Discutir em Paris ou Nova Iorque é como aqui, muitas vezes se discute a fome nas mesas do Coco Bambu, em Brasília, onde também há bons vinhos, além de belos camarões.

O governo da África do Sul, que prepara a cimeira – como os patrícios chamam as conferências –, pede ao Tribunal Penal Internacional que lhe permita não prender o condenado Putin, convidado para o conclave. Prendê-lo, a essa altura, pode representar a eclosão da terceira guerra.

Não se espera muito desses próximos encontros. Como a grade da Netflix, essa série tem que continuar e certamente muitos mísseis ainda serão vendidos e os grãos faltarão às mesas de quem não puder pagar. Como a desgraça de uns é a sorte de outros, nessa triste guerra de grãos nosso celeiro certamente será mais lembrado.

A mesa da diplomacia é assim, há diversificadas intenções, às vezes bom senso. A retórica da guerra pelo menos vai continuar, feito briga de marido e mulher. Como também um galinheiro, onde acontece uma briga de galos pelos grãos e a fama, com esporas afiadas e bicos molhados de vinho. Para desgraça de milhões de pintinhos famintos.

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TAGS ideologia Rússia Turquia Ucrânia valores são dolarizados

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