Cabeça e coração fazem as estações
Já não sei se acredito em estações. Às vezes, penso que estão apenas na cabeça dos poetas. A natureza parecia ser mais determinada, mas bagunçamos com ela. Acho que hoje, a estação, a determinamos nós. Até as folhas já não são tão disciplinadas. Há um mês, acordei com elas espalhadas pelo chão, depois de um vento vindo de Noroeste, encarnadas e amarelas como Woody Allen se referia a essas evidências do outono. Folhas secas que eu recolhia nas calçadas de Paris e de outras cidades por onde passava. Eu tentava colecioná-las guardando dentro de livros. Já não as tenho mais, tampouco aqueles livros que me acompanhavam independentemente da estação e que me faziam companhia com minhas ilusões.
Acabo de ler sobre a passagem de Woody Allen por Portugal nesta semana, onde, retornando de Veneza, parou para um bate-papo com o público lisboeta sobre seu novo filme Golpe de Sorte, a ser lançado em breve, e seu último livro, Gravidade Zero, em que cita as folhas quebradiças encarnadas e amarelas do outono.
Sim, tenho dúvidas quanto ao rigor atual das estações. Setembro, por inaugurar o outono no Hemisfério Norte, é o mês preferido de Woody Allen e também sempre foi o meu, não só por meu aniversário, mas porque prenuncia nossa primavera. Pode ser impressão, mas quando jovem, o mês começava com o rebuliço primaveril. As chuvas eram fortes, mas já aliviavam o calor que mandava embora o frio.
Agora, passado tanto tempo, o clima mostra sua rebeldia. Montevidéu estava nestes dias com vento inclemente, nada a sugerir a esperança do tempo das flores naquele palco onde Gardel e Lepera ensaiavam os primeiros acordes do tango, antes de perpetuá-lo do outro lado do Prata.
O vento cortante, como notas agudas do bandoneon, intercalando sol e chuva, fazia supor que não haveria ambiente para os uruguaios acolherem com entusiasmo os brasileiros que lá foram estreitar sonhos e projetos no Mercosul Export.
Mas decididamente as estações estão em nossas cabeças. Empresários e autoridades uruguaias, do mais alto escalão, chegaram com seus sobretudos para dizerem que querem, sim, se unir na construção de uma economia onde os rios, que não conhecem fronteiras, sejam as veias abertas da América Latina, como citou o CEO do Brasil Export, Fabrício Julião, lembrando a expressão de Eduardo Galeano. O mesmo Galeano que expunha sua alma entre rodadas de vinho e ideias no Café Brasilero, aberto desde 1877 na Ciudad Vieja, mais antigo restaurante uruguaio. Curioso como nosso café inspirou tantos escritores mundo afora, como a Fernando Pessoa no café A Brasileira, no Chiado lisboeta.
Prevaleceu sobre a natureza o calor dos uruguaios nesse encontro que tratou de obras que podem e devem abrir os caminhos nos rios, como veias, num corpo latino em que, sem dúvida, circula o sangue que pulsa no coração de toda sua gente. Nem a diferença de idioma parece ser obstáculo ao desejo de aproximação econômica.
O frio e a chuva não impediram esse momento histórico para os uruguaios. Tampouco para os brasileiros que lá foram para conversas abrasadoras de intenções compartilhadas.
Os rios Paraguai e Paraná e as lagoas Mirim e dos Patos, se tudo der certo mesmo, serão as artérias da união que parece não ter-se rompido nos idos do século XIX, quando a então Província Cisplatina deixou de pertencer ao Brasil. E hoje, quando exibe nítida disposição de ser um país cada vez mais pulsante e moderno, não esconde sua afeição por estes hermanos tupiniquins.
A primavera ainda não chegou, mas já deu mostras de que, ao menos na cabeça de brasileiros e uruguaios, deverá ser bem florida. Que não surjam ventos a espalhar sonhos e projetos feito folhas secas pelo chão. Afinal, as estações estão acima de tudo em nossas cabeças e nossos corações.