Ciclo da vida e da morte
“O ciclo da vida dispõe mistérios, surpresas e certezas para todas as espécies, muitas das quais não esquecem suas origens e um belo dia, mesmo tendo descoberto outras terras, querem voltar para casa. Os anos de vida da tartaruga vão lhe permitindo realizar sonhos, vão lhe dando experiência, vão lhe consumindo a energia que um dia se esvai”
Assim que rompe a casca, na fase em que a Lua permite-lhe a luz, a pequena tartaruga, como tantas outras, caminha sem jeito mas com euforia, em direção ao mar. É o instinto da vida, desbravando o mundo entre ondas que nunca para de enfrentar.
Assisti algumas vezes essa saraivada de pequeninos seres em suas tenras cascas e delicadas patinhas vencendo a areia na Praia do Forte. São crias do Projeto Tamar, pioneiro na preservação das espécies marinhas. Há mais de 40 anos, em parceria com a Marinha do Brasil, circunda o Farol Garcia D’Ávila, cujos sinais luminosos podem ser vistos a 28 quilômetros, protegendo navegantes.
Certamente não seria necessário esse farol para a tartaruga marinha, cujo instinto a faz voltar um dia. A espécie nasce em determinado ponto da costa, indiferente à inclemência dos recifes. Volta, adulta, para depositar os ovos que gerarão novos rebentos. Volta sempre para o mesmo lugar, rincão da Terra que lhe proporcionou a existência.
Penso qual será o significado dessa escolha. Talvez porque lá se sinta aconchegada e segura para gerar seus bebês, mesmo distante ao longo de sua vida, que dura em geral 70 anos. Tempo em que desbrava o mundo. Tempo em que desafia e supera o furor dos oceanos e não a impede de procriar.
O ciclo da vida dispõe mistérios, surpresas e certezas para todas as espécies, muitas das quais não esquecem suas origens e um belo dia, mesmo tendo descoberto outras terras, querem voltar para casa. Os anos de vida da tartaruga vão lhe permitindo realizar sonhos, vão lhe dando experiência, vão lhe consumindo a energia que um dia se esvai.
Há espécies que, nessa fase da existência, lhe atribuem respeito, admiração e proteção. Como se galgassem um trono no olimpo. A matilha de lobos, ao caminhar em bando, segue rigoroso ordenamento. À frente vão os mais jovens e fortes, dando proteção aos anciãos, seguidos da jovem prole com suas mães, e por fim outro grupo de guerreiros para proteger das surpresas ao revés.
Os mais velhos são como sábios para muitos e reverenciados quase como divindades, como se atributos tivessem para apontar os caminhos. Reverenciados em vida e na morte. Como os elefantes, que ao velarem os mortos, fazem uma roda e abanam suas trombas sobre o corpo no improvisado sepulcro.
É lenda que os elefantes velhos, pressentindo a morte, dirigem-se a um cemitério. Apenas sua perda de energia os afasta do bando, e diante da dificuldade de comer cascas e arbustos, dirigem-se para áreas mais pantanosas onde, no seu frescor, conseguem mastigar vegetação mais tenra.
A rigor, a idade mata os sonhos e propicia a solidão. Algumas espécies ficam só por circunstância do grupo formado um dia desde que, em alvoroço, as pequeninas tartarugas lançaram-se ao mar com a bravura da criança. Outras espécies, ou em outros estados de espírito, preferem se refugiar nas lembranças, e mesmo tendo percorrido o mundo, se aquietam no ponto em que vieram à luz, saboreando, com algumas dores, o canto, berço de sempre gloriosa jornada, ainda que vaticinada por tantos infortúnios.
Isso talvez explique porque as tartarugas voltam um dia às areias da Praia do Forte, onde brota a esperança da vida que às crias querem propiciar.