Corredores bioceânicos e os portos brasileiros
A primeira vez que tive contato com uma proposta de ligação terrestre entre os Oceanos Atlântico e Pacífico foi em 2013, quando estive no Chile.
Uma vistosa maquete do “Túnel Água Negra” estava exposta no aeroporto de Santiago, um projeto rodoferroviário, com extensão de 14 km atravessando a Cordilheira dos Andes, parte da ligação entre o Porto de Coquimbo, no Chile, com a Província de San Juan, na Argentina, e dali até Porto Alegre, no Brasil. Seria o túnel mais longo da América Latina!
Ele teve custo estimado em US$ 1,5 bilhão, e chegou a ser objeto de licitação, mas não prosperou por questões políticas e financeiras.
Posteriormente, soube que já existe uma ligação terrestre binacional, rodoviária, na região, só que em nível mais alto. Além dessa, também houve outra, ferroviária, que também tinha um túnel, considerado o mais alto do mundo, na época: o Túnel Transandino. Essa ligação operou entre 1910 e 1984.
Em 2022, foram retomadas tratativas para a ligação que inclui o “Túnel Água Negra”, mas as propostas de ligação bioceânica não param por aí.
A justificativa estratégica é que a ligação terrestre entre o Atlântico e o Pacífico será concorrencialmente vantajosa com a navegação pelo Canal do Panamá ou pelo Cabo Horn, ao sul da América do Sul.
Em abril de 2023, resolvi pesquisar um pouco mais sobre o tema, em função do potencial impacto de ligações bioceânicas terrestres com os portos brasileiros.
Numa rápida prospecção, encontrei informações sobre quatro, propondo as seguintes ligações: Iquique/Antofagasta (Chile) – Santos (SP/Brasil), rodoviária; Lima (Peru) – Vitória (ES/Brasil), ferroviária; Bayovar (Colômbia) – Porto do Açu (RJ/Brasil), rodoviária; e Antofagasta (Chile) – Paranaguá (PR/Brasil), rodoviária. Isso sem incluir a eventual retomada da ligação que inclui o “Túnel Água Negra”.
Salvo engano, o único efetivamente em execução é o Iquique/Antofagasta – Santos, com obras em andamento entre Porto Murtinho (MS) e o Chile, inclusive com uma ponte estaiada com vão livre de 630 m sobre o Rio Paraguai. Ligará Brasil, Paraguai, Argentina e Chile. Entre Santos e Iquique, serão cerca de 3,2 mil km; e entre Santos e Antofagasta, 3,1 mil km.
A ligação Vitória – Lima teria aproximadamente 5 mil km, não muito diferente da extensão do corredor a partir do Porto do Açu – Bayovar, que tem custo estimado em US$ 8 bilhões.
A ligação Paranaguá-Antofagasta seria um pouco mais curta do que a partir de Santos.
Todas têm em comum a necessidade de transpor centenas de quilômetros pela Cordilheira dos Andes, seja por via ferroviária, seja rodoviária, incluindo pântanos, florestas e comunidades isoladas. A questão da altitude também deve ser considerada.
Assim, todas precisarão contornar questões ambientais, além da complexidade de acordos internacionais entre países que nem sempre têm uma relação amistosa ou contínua.
Embora a preocupação não seja exclusiva da ligação bioceânica, também há aspectos de segurança a serem considerados, bem como de eficiência energética do modo de transporte a ser adotado.
No caso de rodovias, por exemplo, a necessidade de manter as estradas em boas condições de circulação, sobretudo em áreas sujeitas a inundações e acúmulo de neve, é mandatória. Isso sem falar na necessidade de utilidades de apoio e descanso para os motoristas, mesmo que haja revezamento na condução. Condução autônoma seria uma opção, dentre várias, mas, aí, entra a questão social.
A implantação de qualquer uma delas permitirá uma nova via de escoamento do agronegócio brasileiro a partir do Centro-Oeste, agregada aos corredores rodoferroviários do Sudeste/Sul e Arco Norte.
É sempre importante lembrar que o principal destino de nossas exportações de commodities agroalimentares do Brasil é a China. Não à toa, aquele país tem interesse na criação desse tipo de corredor, e caixa para financiar sua construção do tipo turn key. A diferença é que o histórico recente de empreendimentos chineses em outros países, inclusive na América Latina, mostra que a tradução em português dessa expressão – “chave na mão” – é mais adequada ao modus operandi, pois quem fica com a chave são eles. Cabe aos governos definirem se isso é do interesse estratégico de seus países.
Como o comércio exterior brasileiro é fortemente baseado na exportação de commodities do agronegócio e do extrativismo mineral, é preciso avaliar como isso impactará a logística nacional, sobretudo o sistema portuário.
O Plano Nacional de Logística – PNL 2035, em sua versão de 2021, considerou como cenário base o ano de 2017. Nele, são identificadas rodovias, ferrovias, hidrovias e dutovias que chegam às fronteiras com outros países. Algumas dessas vias integram os trajetos dos corredores bioceânicos anteriormente mencionados, mas é notório que sua adequação à demanda implicará em licenciamentos ambientais e acordos internacionais. No caso do Brasil, os problemas com licenciamentos ambientais e judicializações são bem conhecidos.
Nesse cenário, a matriz de transporte é 57,66% rodoviária (automóveis), 24,75% aeroviária, 16,83% rodoviária (caminhões), 0,55% hidroviária e 0,20% ferroviária. Não foi encontrada menção a percentual relativo ao dutoviário.
A partir dessa base, o PNL 2035 considerou nove cenários, tendo como premissas: aumento da participação do modo ferroviário acima de 30%, em qualquer cenário; aumento da participação dos modos de grande capacidade (ferroviário, hidroviário e cabotagem), também acima de 30%, em qualquer cenário; redução de até 14% no nível de emissão de poluentes; aumento da segurança rodoviária em até 9%, para citar os aspectos mais diretamente ligados ao transporte de cargas.
Essa racionalização da matriz de transportes implicaria, segundo o PNL 2035, em crescimento do PIB da ordem de 6 a 11%.
Iniciativas com a BR do Mar e a BR dos Rios tendem a incrementar a utilização do transporte aquaviário, demandando diretamente o sistema portuário. No caso de hidrovias, o desafio continua sendo o licenciamento ambiental, pois, sua implantação envolve obras de Engenharia (retificações e/ou transposições de cursos d’água, e eclusagem, por exemplo). Portos marítimos e estuarinos e suas retroáreas também seguem a mesma sina.
Consta que um participante de comitiva brasileira, numa viagem técnica à Europa, teria perguntado sobre o impacto ambiental de uma grande hidrovia em construção naquele continente. O responsável, algo surpreso com o questionamento, respondeu que a utilização desse modo representaria significativa redução da utilização de caminhões e, consequentemente, emissões de poluentes.
Será que os “russos” brasileiros entendem da mesma forma?
Parece que não, pois, esse também foi o argumento da proposta de transporte aquaviário de sal do Armazém 23 do Porto de Santos para a planta industrial da Unipar (antiga Carbocloro), em Cubatão. Segundo a proposta, cerca de 60 mil viagens de caminhão ao ano seriam substituídas pelo transporte por barcaças, de melhor eficiência energética. Passados mais de 15 anos, essa solução ainda não foi viabilizada, por questões econômicas decorrentes das restrições ambientais impostas.
Voltando ao PNL 2035, o Cenário 9 foi o que apresentou o conjunto de empreendimentos que apresentaram os impactos positivos mais significativos, com previsão de investimentos da ordem de R$ 408,9 bilhões, sendo: R$ 168,6 bilhões em ferrovias; R$ 158,2 bilhões em rodovias; R$ 59,5 bilhões em portos; R$ 19,0 bilhões em aeroportos e R$ 3,6 bilhões em hidrovias. No entanto, os responsáveis pelo Plano reconhecem que há necessidade de flexibilização da base regulatória para viabilizar a expansão necessária. A participação da iniciativa privada nos investimentos também é condicionante.
No geral, o PNL 2035 foi elaborado visando contribuir para a competitividade nacional, a sustentabilidade ambiental, o bem-estar social, o desenvolvimento regional e a integração nacional.
No âmbito da sustentabilidade ambiental, é preciso considerar o quanto a legislação ambiental atual afeta esse Plano, independentemente dos rearranjos ministeriais em debate. A definição do marco temporal também é relevante, para evitar que todo o anúncio de intenção de empreendimento seja entendido, por alguns setores, como uma oportunidade de criar dificuldades, em nome de outros interesses. A legislação ambiental também precisa ser racionalizada, para equilibrar aspectos econômicos e sociais, configurando, assim, sustentabilidade plena, pois, a falta dessa visão holística acaba por prejudicar o meio ambiente. Medidas mitigadoras e compensatórias existem para isso!
No mapa correspondente ao Cenário 9, traçados rodoferroviários previstos nos corredores bioceânicos mencionados aparecem, potencializando alternativas de escoamento da produção do agronegócio brasileiro. Os investimentos em portos são bastante significativos. Porém, qual será o impacto efetivo das rotas alternativas nos portos brasileiros, já que as exportações de commodities agroalimentares para nosso principal cliente, a China, poderá ocorrer pelo Oceano Pacífico?
Haverá intercâmbio de cargas entre os portos extremos? Em caso positivo, de que tipo de carga?
O interesse do exportador é que a crescente produtividade do agronegócio conte com logística que assegure competitividade nos mercados externo e interno. Nesse sentido, a tendência natural é buscar a alternativa mais eficiente.
Assim, parece que esses corredores bioceânicos serão efetivamente mais interessantes em uma ou outra direção, a partir do interior do continente sul-americano. O mesmo vale para o Arco Norte, em relação aos portos do Sul e Sudeste.
Haverá carga suficiente para “gregos e troianos”?
As alternativas de escoamento para o agronegócio devem ser estudadas, como também deve ser avaliada a inclusão de outros tipos de cargas, de maior valor agregado, com potencial competitivo no mercado internacional. O anunciado e necessário processo de reindustrialização do Brasil, com produção idealmente próxima aos portos, como fator de redução de custos, exige.
Ainda quanto ao agronegócio, é necessário ampliar exportações para países da América do Sul, América Central, Caribe, África, Oriente Médio e Europa, o que não é simples, considerando que alguns vivem em intermináveis crises econômicas, políticas e guerras, enquanto outros exercem protecionismos internos exacerbados.
A iniciativa privada não investe quando há instabilidade política, regulatória, política, ou quando identifica risco de inadimplência. Investimentos públicos também deveriam fazer isso, exceto para evitar convulsões sociais internas que, aliás, podem ser evitadas quando a economia é forte e dinâmica.
É discurso comum que, em vez de exportar grãos, poderíamos exportar óleo e outros produtos industrializados, de maior valor agregado.
Por conta disso, há alguns anos consultei um especialista em agronegócio sobre essa possibilidade. Ele respondeu que, ao menos naquele momento, isso não era viável. Explicou que nosso principal importador era a China (isso só aumentou, posteriormente), que havia criado plantas industriais de processamento de grãos próximas a seus portos, para fazer exatamente isso. Ah, o planejamento estratégico!
A ideia é viável, mas, é preciso saber para quais mercados.
Seguramente, a produção industrial em setores de tecnologia e bens de consumo também não terá como destino a China. Também é preciso prospectar mercados.
Os Planos Mestres e Planos de Desenvolvimento e Zoneamento Portuários consideram alguns cenários, normalmente baseados em cargas já operadas. No caso de portos públicos, os terminais são arrendados considerando uma tipologia específica de operação, por um período relativamente longo. Como flexibilizar ou redefinir essas operações, caso surjam novas mercadorias?
Produtos de maior valor agregado normalmente são operados via contêineres, ro-ro ou cargas de projeto. Caso o processo de reindustrialização seja efetivamente implementado, com potencial competitivo para exportações, os portos brasileiros estão aptos para atender essa demanda?
Novos terminais ou readequações levam anos para serem licenciados e entrarem em operação. Isso, mesmo que não haja intercorrências no processo, que envolvem também aspectos políticos, internos e externos.
Em suma, os corredores bioceânicos, o Arco Norte, diversificação sustentável da matriz de transportes e qualquer outra iniciativa que melhore a logística são importantes e bem vindas. Mas, também é indispensável que nossa carteira de produtos de exportação seja diversificada e de maior valor agregado e tecnologia.
Se há alguma coisa que devemos ter a China como referência, é na visão estratégica e na objetividade na concretização de planos.