Democracia, relatividade e totalitarismo
A palavra democracia tem sido muito maltratada desde que os gregos a definiram.
Consta que a formação do conceito de democracia (do grego: demo = povo, kracia = governo) aconteceu em Atenas, no ano de 519 a.C, por meio de um movimento popular que derrubou o tirano que estava no poder. No entanto, o “governo do povo” ficou restrito apenas aos cidadãos atenienses, cerca de 25% de sua população, excluindo mulheres, pessoas escravizadas, estrangeiros e jovens fora da idade de serviço militar.
Assim, nasceu excludente, sectária e, porque não dizer, relativa. Mas evoluiu ao longo do tempo, o que se espera da civilização. E o ideal é que continue evoluindo, preferencialmente seguindo uma tendência assintótica e sem atingir um apogeu. Isso porque apogeus, historicamente, precederam quedas. Períodos de altos e baixos, entendidos como extremos opostos, também não são muito saudáveis.
Nesse processo histórico, merece destaque a Carta Magna inglesa, de 1215, que serviu de referência para as constituições posteriores. No entanto, ela basicamente limitava o poder dos reis sobre seus nobres, e não destes sobre seus feudos. Mesmo assim, esse processo logo foi ofuscado pelo absolutismo de Louis XIV (1638-1715): “L’État, c’est moi!”, estabelecido em 1655.
A Revolução Francesa (1789-1799), tão decantada por seu lema: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, também teve seu período de terror (1792-1794), que teve a guilhotina como emblemático instrumento “democrático”.
Essa revolução popular não poupou a família real e nobres, assim como a Revolução Russa (1917). Era preciso evitar que modelos anteriores ameaçassem o novo regime. Isso não impediu que Napoleão Bonaparte (1769-1821), que lutara para defender a Revolução Francesa, se autoproclamasse imperador; ou que Josef Stalin (1878-1953) fosse objeto de culto até a sua morte.
O que há em comum nessas duas revoluções populares é que substituíram uma elite por outra, perseguindo e eliminando qualquer oposição, usando dos mesmos métodos de repressão e opressão.
Winston Churchill (1874-1965) disse, certa vez, que a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as demais. Assim, entre tropeços e relativizações, ela tem persistido.
Atualmente, merecem destaque a democracia direta e a representativa. Mesmo nos reinados remanescentes, a representatividade ocorre, por meio do parlamentarismo, que também existe em alguns regimes presidencialistas.
Ainda há muitos regimes totalitários, ditaduras violentas e antidemocráticas, porém ninguém assume essa condição, relativizando sua “democracia” por meio de definições próprias, eleições duvidosas e/ou representatividade popular seletiva.
George Orwell (1903-1950), em sua obra “A Revolução dos Bichos” (1945), definiu a relatividade do: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”. Foi mais além em “1984” (1949), imaginando uma sociedade humana “igualitária”, baseada na doutrinação, no patrulhamento ideológico e no culto à personalidade: um “Grande Irmão”, que nada tinha de fraterno. Ele não foi tão criativo, afora as questões tecnológicas, pois já havia exemplos desse tipo de exercício de poder “democrático”.
Orwell também teria afirmado que: “A história é contada pelos vencedores”. No caso de alternância de poder, sobretudo no caso de revoluções, a “história” tem sido escrita e reescrita, de acordo com conveniências e ideologias do poder secular do momento.
Assim, a História iniciada por Heródoto (484 a.C. – 425 a.C.) está mais para a Teoria do Caos, definida por Edward Lorenz (1917-2008). Aliás, o “efeito borboleta” tem muito a ver com a globalização.
Qualquer que seja a denominação dada ao regime político, tudo se resume a uma palavra: poder! E uma vez obtido, tudo o que importa é mantê-lo, pois ele é fascinante.
Assim, sob o verniz da inclusão da palavra “democracia” ou seus derivados (“democrática” ou “democrático”), muitas ditaduras de partido único se instalaram no mundo contemporâneo, “democraticamente” perseguindo e/ou expurgando quem ameace sua “legitimidade”.
E mesmo sob um regime considerado democrático, é possível “aparelhar” o Estado, tornando-o ingovernável, no caso de transições divergentes de comando, ou preparando o caminho para o totalitarismo. O poder também pode ser relativo.
Uma vez atingido esse objetivo, todos serão considerados iguais, desde que sejam membros do partido único, preferencialmente fanatizados desde a infância a idolatrarem seus líderes e a odiarem quem questione seus dogmas.
Outros partidos são permitidos, às vezes. Fazem parte do “verniz democrático”, atuando como figurantes da encenação.
Nesse tipo de “democracia”, livros são queimados, e não apenas livros.
Baseados em discursos tão poderosos quanto alienantes, e em lideranças carismáticas, insofismáveis, esses regimes relativizaram a democracia, punindo os não iguais de forma cruel, em alguns casos caracterizando crimes contra a Humanidade.
No entanto, as narrativas de que lançam mão – teorizadas pelo inconformismo ideológico, mas, também, pelo rancor – são tão poderosas perante suas massas de manobra, que não faltam “negacionistas” para seus atos de exceção e crimes hediondos.
Há quem negue o “holocausto”, o “genocídio armênio”, o “holodomor” e os “gulags”. Muito pior, há quem os justifique!
No Brasil, na época do regime militar, o então presidente Ernesto Geisel afirmou que, no País, havia uma “democracia relativa”. Era um tempo de apenas dois partidos: a Arena, alinhada com o poder, e o MDB, oposição consentida.
Os governadores e prefeitos de cidades sob intervenção federal eram nomeados pelo Governo Federal. As cassações de políticos ocorreram aos borbotões, a partir do Ato Institucional nº 5. Além do Poder Legislativo ter tido sua representatividade reduzida, em termos de liberdade de escolha do eleitor, a composição do Senado foi relativizada pela criação da figura dos senadores “biônicos”. Indicados pela Presidência da República e aprovados por um congresso de maioria controlada, eles compuseram 1/3 do Senado.
Fernando Gabeira, um dos ícones da oposição nesse período, posteriormente afirmou que a intenção dos militantes não era tão democrática, como era o discurso de seus líderes, mas de trocar a ditadura de direita por uma “ditadura do proletariado”, com apoio da URSS e de seu braço latino-americano, Cuba. Seria mudar de uma “democracia relativa” para outra.
A Constituição de 1988, denominada “Cidadã” por seus autores, logo em seu Parágrafo Único, do Art. 1º, definiu: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
No âmbito da representatividade, houve intenção de criar “conselhos populares” com poder concorrente com o do Legislativo.
O “diretamente”, segundo o Art. 14, é por meio de: plebiscitos e referendos – consultas pré e pós finalização de matérias pelo Congresso Nacional aos eleitores, em matérias de relevância -, e iniciativas populares. O problema é que plebiscitos e referendos são convocados pelo Congresso Nacional. As propostas decorrentes de iniciativas populares também são apreciadas pelo Poder Legislativo.
Quais os resultados de plebiscitos e referendos em que a vontade dos eleitores foi acatada, e quais iniciativas populares prosperaram?
Além de raras, quase sempre as consultas ficaram por conta do “grato pela opinião”, ou barradas pela “relatividade” da Constituição, que permite interpretações.
Em tese, as leis passam pelo crivo de assessorias jurídicas das duas casas do Congresso Nacional. No entanto, tem sido cada vez mais comum o Supremo Tribunal Federal (STF) julgar suas “constitucionalidades”.
Então, ou as assessorias são falhas, ou o STF está exorbitando em suas funções, ou a Constituição – assim como a totalidade do arcabouço legal brasileiro – dá margem a dúvidas, conflitos e interpretações que chegam a prejudicar a governabilidade, a independência entre poderes e a vida das pessoas.
Esse cenário de “n” pesos com “n” medidas se traduz em instabilidade jurídica.
O Art. 5º da Carta Magna define que: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade […]”, porém, na sequência, precisa explicar do que se trata.
Isso é uma significativa evolução, em relação à democracia ateniense, de fato. Porém, todos são efetivamente iguais perante a lei, sem distinção de qualquer espécie?
Infelizmente, como já mencionado, o uso da palavra democracia tem sido relativizado de múltiplas formas. Em alguns casos, seu uso é um impropério; em outros, um sacrilégio; e, não raro, uma meia-verdade oportuna ou uma mentira deslavada.
Os detentores do poder a relativizam. Alguns a adotam internamente, mas defendem e/ou financiam ditaduras, externamente, com outros interesses.
O fato de haver eleições não é suficiente para afirmar que um regime é plenamente democrático.
O livre-arbítrio permite que cada um procure entender o ideal e o real sentido da democracia. Porém, até que ponto seres humanos têm sido formados para terem pensamento crítico, autônomo e para aceitarem o contraditório dialeticamente, em vez de gargalharem, desconstruírem reputações, perseguirem, “lacrarem”, patrulharem, “cancelarem” ou até exterminarem quem discorde de suas opiniões e crenças?
As novas gerações são formadas pelo poder dominante, seja ele familiar, grupal, religioso ou político.
A doutrinação – que leva ao fanatismo ou à incapacidade de pensar ou aceitar o contraditório – tem sinônimos da moda, pois, sempre tem alguém criando novas palavras e expressões, em tese, mais “eruditas” e menos impactantes. Assim, cada vez mais se usam expressões como imunização cognitiva. Apatia e sociopatia agora podem ser resumidas como desengajamento moral.
A evolução da civilização decorreu de processos evolutivos e disruptivos, nem sempre tranquilos. Esse processo quase sempre decorreu de transições de poder, mas também de respeito à condição humana, com base em racionalidade.
Os seres humanos não são todos iguais, pois não são produtos de uma linha de montagem “fordista”.
Infelizmente, alguns dos “mais iguais” existem, prosperam e tentam se perpetuar no poder, criando seus “rebanhos”, propagando mentiras repetidas mil vezes e usando o carisma qual um “flautista de Hamelin”.
É uma estratégia tão antiga quanto eficaz, que faz da relatividade seu principal argumento, mas só para quem foi doutrinado para não raciocinar ou se aproveita dela para justificar seus pensamentos, atos e palavras.
O problema é que um regime de governo afeta milhões de seres humanos de forma desigual, mesmo quando ele afirma considerar que todos são iguais. E existem exemplos de governos totalitários que chegaram ao poder pela relativização da democracia.
Nesse sentido, continua valendo a frase atribuída a John Philpot Curran (1750-1817): “O preço da liberdade (também aplicável à democracia) é a eterna vigilância”.