Desafios e oportunidades das mudanças climáticas para o setor marítimo
Por João David Santos
Engº Mecânico e mestre em Saúde e Segurança Ocupacionais, gerente de Sustentabilidade e executivo responsável pela agenda climática na Wilson Sons
As mudanças climáticas representam um desafio sem precedentes para o setor marítimo global, que é responsável por cerca de 3% das emissões mundiais de dióxido de carbono equivalente (CO2eq). Como um componente vital da economia, responsável pelo transporte de mais de 90% de todo fluxo de comércio global, o setor enfrenta pressões crescentes para reduzir suas emissões de gases de efeito estufa (GEE), ainda que seja o modal logístico mais eficiente de todos.
A Organização Marítima Internacional (IMO, da sigla em inglês) estabeleceu metas ambiciosas para descarbonizar o transporte marítimo, culminando no atingimento de emissões líquidas zero de GEE por volta de 2050. Atingir este desempenho exigirá uma transformação significativa das práticas operacionais e tecnológicas atuais: 99,7% dos navios usam como fonte de energia exclusivamente combustíveis fósseis, e dos pedidos em construção, mais de 91% ainda mantém a sua matriz energética baseada em fontes não renováveis . Outro desafio é a infraestrutura portuária, que muitas vezes não está preparada para a transição para tecnologias mais limpas. Além disso, a regulamentação varia significativamente entre os países, criando um ambiente complexo e às vezes contraditório para as empresas que operam em rotas internacionais.
Nos cenários apresentados, é relevante avançar nas discussões para que o setor marítimo faça parte da solução para redução das emissões de gases de efeito estufa, sem comprometer a infraestrutura da logística global de bens de consumo, levando-se em consideração as particularidades do setor, como a alta utilização de ativos com longo prazo para depreciação, estando mais expostos à imprevisibilidade dos diferentes cenários em análise.
A transição para um setor marítimo mais sustentável também envolve investimentos substanciais. A pesquisa, desenvolvimento e implementação de novas tecnologias, como navios movidos a hidrogênio ou amônia, exigem saltos significativos. As empresas de transporte marítimo enfrentam o desafio de superar essa transição sem comprometer sua viabilidade econômica.
Para o setor marítimo, aspectos de segurança a bordo são críticos para a operação de embarcações, tendo em vista a necessidade de armazenamento de grandes quantidades de energia a bordo, além da limitação de acesso a recursos de mitigação e combate em cenários reais de incêndios ou explosões. Os combustíveis marítimos da atualidade possuem características que enfatizam a segurança das embarcações e suas tripulações, como o alto ponto de fulgor, implicando em menores riscos. Fontes alternativas de energia atualmente em pesquisa ou em teste implicam no aumento significativo dos riscos a bordo, seja por suas características no estado final de utilização, seja pela menor densidade energética, gerando volumes maiores a bordo.
Combustíveis como o etanol e o biometanol possuem baixo ponto de fulgor, apresentando vapores voláteis à temperatura ambiente, implicando em risco agravado de incêndio. Gás natural liquefeito (LNG, da sigla em inglês) implica na permanente possibilidade de mudança de estado (de líquido para gasoso), visto que o combustível é mantido no estado líquido a partir do controle de temperatura, e quando convertido em gás para utilização nos motores, resulta em maior possibilidade de escape. Os projetos de embarcações com uso de hidrogênio envolvem sistemas pressurizados, além do comportamento altamente reativo do produto em função da sua instabilidade. Amônia representa um alto risco à vida humana e aquática, por se tratar de um produto extremamente tóxico, com alta letalidade mesmo em concentrações relativamente pequenas. No caso do uso de baterias, os riscos resultam da maior possibilidade de explosões e capacidade restrita de combate no caso de incêndio. As exceções ficam por conta dos combustíveis renováveis que se assemelham ao óleo diesel, como o biodiesel, que possuem maior estabilidade e ponto de fulgor do que o próprio combustível fóssil, com densidade energética semelhante.
Onde há desafios, há oportunidades. A inovação tecnológica é fundamental para enfrentar a nova realidade imposta pelas mudanças climáticas. Tecnologias emergentes, como propulsão elétrica, combustíveis alternativos (biocombustíveis, hidrogênio, amônia), e sistemas de energia renovável a bordo, ou o uso da inteligência artificial para otimizar deslocamentos, oferecem caminhos promissores para reduzir as emissões.
Atenção especial deve ser dada à eficiência energética, por seu potencial de impacto e abrangência. A própria IMO estima que as principais fontes de descarbonização até 2030 virão de iniciativas de eficiência energética, com potencial de redução de 30% no total das emissões. A troca de matriz energética na frota global de embarcações é gradual, portanto os impactos demoram mais a surtir efeito na descarbonização. Já as ações de eficiência têm impacto em embarcações existentes, com potencial muito maior de abatimento no curto e médio prazo, além do benefício de serem muitas vezes custo-efetivas, gerando resultados positivos para contribuir na futura descarbonização do setor.
O Brasil tem particularidades que se destacam para capturar as oportunidades da transição para a economia de baixo carbono. Além de possuir uma vocação natural para a logística marítima, com seu extenso litoral e rios e lagos navegáveis, é também grande produtor de biocombustíveis (principalmente etanol e biodiesel), além de possuir uma matriz energética proporcionalmente mais renovável que a das grandes economias – de acordo com os últimos dados do BEN (Balanço Energético Nacional), mais de 49% da oferta de energia interna veio de fontes renováveis em 2023. Tais virtudes abrem caminhos para tornar o Brasil protagonista na agenda climática, repercutindo de maneira sustentável em sua economia, bem como benefícios de grande impacto social, participando ativamente na oferta de energias renováveis para outros países.
A digitalização do setor marítimo também apresenta oportunidades significativas. Sistemas avançados de gerenciamento de tráfego marítimo e logística podem otimizar rotas e reduzir o consumo de combustível. A análise de big data permite prever manutenções necessárias e melhorar a eficiência operacional, contribuindo para a redução das emissões de GEE.
A colaboração entre diferentes stakeholders é essencial para o sucesso da transição energética no setor marítimo. Parcerias entre empresas, governos, e instituições de pesquisa podem acelerar o desenvolvimento e a implementação de novas tecnologias. Programas como o “Getting to Zero Coalition”, que reúne mais de 150 empresas para promover a descarbonização do transporte marítimo, exemplificam como a cooperação pode levar a avanços significativos.
O financiamento verde e os investimentos sustentáveis também são áreas em crescimento que podem suportar a transição do setor marítimo. Fundos de investimento e bancos estão cada vez mais direcionando recursos para projetos que promovam a sustentabilidade e a redução das emissões de carbono.
Setor Portuário
A navegação de apoio também é parte integrante do setor de transporte marítimo. No apoio portuário, os rebocadores são elementos essenciais para a segurança dos navios, terminais, outras embarcações, e demais instalações que compõem os complexos portuários. Da mesma forma, operam como recurso indispensável para a salvatagem de navios em dificuldades ou manobras de estruturas especiais, como as plataformas de petróleo. Esta função de compor a segurança da navegação é ainda mais relevante diante de uma emergência climática. Na mesma proporção em que os eventos climáticos aumentam em intensidade e frequência, é fundamental contar com recursos de apoio aos navios em caso de tempestades, aumento da velocidade das correntes hídricas, além de vendavais, sendo necessária a atuação mais frequente de rebocadores para conterem as embarcações maiores. Pequenos em tamanho, os rebocadores são muito potentes, já que precisam manobrar navios que, atualmente, podem alcançar quase 400m de comprimento e 60m de largura, e ultrapassar 150 mil toneladas de arqueação bruta. Requerem extrema confiabilidade e prontidão operacionais, valendo-se atualmente de tecnologias consolidadas, tendo na propulsão principal pares de motores a diesel que alcançam potências superiores a 2.000 kW cada um, capazes de operar por longos períodos sem necessidade de reabastecimento.
A Wilson Sons, maior operador de logística marítima e portuária do mercado brasileiro , possui também a maior frota de rebocadores, com mais de 80 embarcações, e vem investindo em tecnologia e inovação para mitigar suas emissões de carbono. Algumas iniciativas merecem destaque, como a utilização de uma Central de Operações (COR) que coordena e monitora as atividades de toda frota em tempo real, permitindo que os deslocamentos, velocidade e fluxo de manobras sejam cuidadosamente avaliados, otimizando o uso das embarcações; eficiência no planejamento e programação do deslocamento das embarcações são uma realidade, possibilitando navegação em velocidades menores e/ou rotações mais constantes, a partir das análises feitas na COR. Outro exemplo é o dimensionamento adequado do número de rebocadores a cada manobra: Com a frota mais moderna e potente da atualidade, no Brasil, os rebocadores da Wilson Sons permitem a realização de manobras de navios de grande tonelagem de forma mais eficiente, reduzindo o uso total de energia pelo uso de menos embarcações no processo. Mais recentemente, a companhia vem construindo embarcações com tecnologia inovadora do casco, utilizando quilhas duplas, que permitem uma economia de até 14% de combustível, reduzindo na mesma proporção as emissões de GEE. Até o final de 2024, serão seis embarcações da mesma classe.
Destaca-se também a intensificação no uso de energia de terra enquanto os rebocadores estão atracados aguardando manobra. Atualmente, mais de 70% da frota da companhia já tem acesso à energia elétrica para suprir os sistemas básicos que continuam ativos enquanto a embarcação não está em operação, com potencial de redução de até 20% das emissões totais de GEE.
A companhia também vem analisando e testando tecnologias para continuar aumentando a eficiência energética da execução dos seus serviços, bem como buscar alternativas para utilizar em sua matriz cada vez mais fontes renováveis, como biocombustíveis e configurações híbridas de motorização.
Biodiesel FAME: o biodiesel éster metílico e ácido graxo (biodiesel FAME, da sigla em inglês) é produzido no Brasil a partir de biomassa, principalmente de soja. O biodiesel FAME brasileiro tem uma baixa emissão de gases de efeito estufa considerando-se todo o ciclo de vida – “do poço à roda” (em média há uma redução de 74% nas emissões do diesel FAME na comparação com o diesel fóssil, de acordo com estudo publicado pela EPE (Empresa de Pesquisa Energética ). Amplamente aplicado em equipamentos rodoviários, a mistura ao diesel fóssil é obrigatória desde 2008 e atualmente a proporção está em 14% de biodiesel. A oferta regular, abrangente e abundante do combustível no Brasil, com produção atual estimada em 55% da capacidade instalada, indica a possibilidade de absorção de novos volumes nos próximos anos . De acordo com a fabricante de motores Caterpillar, os motores principais das embarcações da frota da WS podem receber misturas com até 30% de biodiesel, sem necessidade de adaptações significativas. Esta perspectiva permitiria uma redução importante nas emissões, com abrangência para praticamente todos os portos onde a WS opera. Pode ser utilizada tanto em embarcações existentes, quanto nas novas construções. A mistura de diesel e biodiesel é uma alternativa economicamente viável, adaptável e disponível. Sua aplicação em larga escala depende de alterações nas políticas públicas atuais, tendo em vista que a mistura não abrange os combustíveis marítimos.
Biodiesel HVO: a exemplo do biodiesel FAME, o HVO (óleo vegetal hidrotratado, na sigla em inglês) também é produzido a partir de biomassa, mas em um processo diferente, conferindo ao combustível características que permitem ser classificado como drop-in (que pode ser utilizado em qualquer proporção de mistura com diesel fóssil, ou até mesmo puro, sem necessidade de adaptações). O HVO é o tipo de diesel verde ou diesel renovável mais produzido no mundo, sendo o terceiro mais consumido (atrás do etanol e do biodiesel) e aquele cuja produção mais cresce no mundo (incluindo o etanol e o biodiesel nessa comparação). Esse crescimento é explicado pelo menor custo do produto em relação às demais rotas; pelo maior desenvolvimento tecnológico; e pela excelente qualidade do produto, tornando-o adequado às mais modernas tecnologias de motores.
No Brasil, há oferta pontual do produto a partir da Petrobras (Refinaria de Araucária) , misturado diretamente ao diesel fóssil nas proporções de 5% e 10%. A empresa já anunciou que estenderá a produção de HVO para as unidades de Paulínia (SP), Duque de Caxias (RJ) e Mauá (SP), além da construção de uma unidade dedicada de produção de HVO em Cubatão (SP), totalizando a oferta de mais de 10 bilhões de litros/ano até 2027. Há ainda o anúncio de outros fabricantes, como a Refinaria de Mataripe (BA), prevendo a produção de 1 bilhão de litros/ano .
Os desafios apresentados pelas mudanças climáticas ao setor marítimo são complexos e multifacetados, exigindo uma abordagem integrada que combine inovação tecnológica, colaboração entre setores e apoio regulatório. No entanto, as oportunidades são igualmente substanciais. Ao adotar novas tecnologias, melhorar a eficiência operacional e trabalhar em conjunto com diversos stakeholders, o setor marítimo pode não apenas reduzir seu impacto ambiental, mas também liderar a transição para uma economia global mais sustentável. A evolução do setor marítimo em resposta às mudanças climáticas será um teste crucial de resiliência e inovação, com implicações profundas para o futuro do comércio global e do meio ambiente.