sexta-feira, 20 de dezembro de 2024
Dolar Com.
Euro Com.
Libra Com.
Yuan Com.
Opinião

Artigos

Adilson Luiz Gonçalves

Clique para ver mais

Articulista

Dois pesos

A Europa é um continente curioso.

Desde tempos imemoriáveis, ela foi palco de disputas entre povos, conflitos sangrentos e colonizações que exportaram essas desavenças, ao mesmo tempo em que exploraram, exauriram e, até, exterminaram quem estivesse em seus caminhos.

Lá surgiram duas guerras mundiais e a maioria – quase a totalidade – das ideologias que, até hoje, têm dividido o mundo, antagonizando nações e discriminando seres humanos com base em estereótipos que, quase sempre, vêm acompanhados de uma imensa hipocrisia, que também está sendo exportada, por meio da globalização.

No entanto, principalmente depois da Segunda Guerra Mundial, a Europa tomou algumas decisões coerentes e, considerando seu histórico, desafiadoras. A principal delas foi se pensar como continente, em nome da sobrevivência de cada um dos países que a compõe.

Esse processo, antes improvável, foi uma necessidade premente no pós-guerra, com vários países arrasados, territorialmente, economicamente e humanamente. Além de toda essa desgraça autoprovocada, também se viu fragmentada em dois blocos geopolíticos, que resultaram na criação da Otan (1949) e do Pacto de Varsóvia (1955).

Antes disso, em 1947, foi lançado o Plano Marshall, cuja proposta foi tão simples quanto estrategicamente brilhante.

A lição do Tratado de Versalhes fora aprendida. Afinal, as pesadas sanções impostas à Alemanha e a seus aliados acabaram criando um ambiente propício para o surgimento de regimes populistas e a ascensão de líderes carismáticos, como Mussolini e Hitler. E mesmo entre membros da Tríplice Entente, como a Rússia, a crise econômica e social levou à Revolução de 1917, antes mesmo do fim da guerra. Também é interessante notar que a divisão da Europa ocorrida após o fim da Segunda Guerra Mundial já havia sido prevista por Hitler e Stalin, por meio do Pacto Molotov-Ribbentrop, de 1939.

Assim, os EUA resolveram, em vez de cobrar sanções semelhantes às dos vencedores da Primeira Guerra Mundial, investir na recuperação econômica dos países não ocupados pela URSS. Isso valeu, inclusive, para a Alemanha. Lá no Oriente, também valeu para o Japão.

Dentro do processo de recuperação da Europa Ocidental, também houve um estreitamento de relações entre países. Inicialmente, foi criado o Mercado Comum Europeu (MCE), em 1957, envolvendo Alemanha, Bélgica, França, Itália, Holanda e Luxemburgo. A aproximação entre a Alemanha e a França merece um capítulo à parte, com ênfase na assinatura do Tratado do Eliseu, em 1963, que celebrou uma amizade entre dois antigos beligerantes e os colocou, até hoje, como parceiros e protagonistas no cenário econômico europeu.

Em 1992, o Tratado de Maastricht transformou o MCE em União Europeia (UE), que resultou na criação de uma moeda única, o Euro, além de outras disposições estratégicas que a tornaram uma potência econômica mundial bem ao estilo de “a união faz a força”. Para tanto, também contribuíram a tradição científica e tecnológica dos países que a integram e, também, protecionismos e ações estratégicas que asseguraram a estabilidade econômica e social, além de dissuasão contra potenciais agressões externas, OTAN, inclusa.

Hoje, a UE é composta por 27 países e a OTAN, por 31 (incluindo EUA e Canadá), grupo que deve brevemente ser agregado da Suécia, em meio à tensão do conflito russo-ucraniano.

O fato é que, no que se refere a interesses estratégicos, a Europa faz o que é preciso, sem maiores preocupações com as opiniões contrárias, internas ou externas. Porém, alguns de seus países também mantêm estratégias externas, para proteger seus interesses, incluindo financiamentos de entidades em países subdesenvolvidos ou emergentes, com “nobres” intenções que não praticam em seu território. Essa visão “humanista”, “globalista” e “ambientalista” quase sempre configura um discurso panfletário ou uma narrativa para uso externo, que pode esconder o real interesse: garantir importações de matéria-prima barata e mercado consumidor para seus produtos de maior valor agregado.

Internamente, não estão de todo errados, mas isso, no geral, demonstra certa hipocrisia do tipo “dois pesos e duas medidas”, ou seja, cobranças externas daquilo que não fazem, ou que fazem de um jeito que não querem fora de seus domínios.

Até aí, alguém pode perguntar qual o objetivo do artigo, no final das contas.

Pois bem, tempos atrás, ouvi de um empresário que, quando participava de uma comitiva de brasileiros na Europa, um dos participantes questionou um palestrante sobre o impacto ambiental de uma hidrovia que seria construída. Surpreso com a pergunta, o europeu respondeu que o transporte hidroviário, por sua melhor eficiência energética, geraria menos impacto ambiental do que o rodoviário.

Esse argumento agora está sendo usado como uma das justificativas para a ligação seca Santos-Guarujá, que encurtará em cerca de 45 quilômetros o trajeto terrestre entre essas cidades. Segundo estimativa da Autoridade Portuária de Santos, a implantação do túnel reduzirá cerca de 60 vezes as emissões de CO2 equivalentes atuais, num horizonte de 10 anos.

O melhor balanceamento da matriz de transportes, privilegiando modos de melhor eficiência energética, assim como a redução de trajetos, representa um menor impacto ambiental.

Nesses termos, os modos de transporte existentes, em ordem crescente de eficiência energética, apresentam a seguinte ordem: aeroviário, rodoviário, ferroviário, aquaviário e dutoviário. Porém, cada um tem suas especificidades e aplicabilidades. Por conta disso, a multimodalidade e a intermodalidade são soluções logísticas cada vez mais arraigadas.

No caso de hidrovias, por exemplo, o potencial do Brasil é imenso. Porém, demanda obras de Engenharia, como eclusas, retificações, dragagem e derrocamento. Infelizmente, a falta de visão estratégica e os custos associados fizeram com que barragens de usinas hidrelétricas fossem construídas sem eclusas e pontes com gabarito aéreo e vãos que restringem a navegabilidade de barcaças. A Hidrovia Tietê-Paraná precisou adaptar estruturas existentes para melhorar sua produtividade e segurança.

Afora questões de Engenharia, os licenciamentos ambientais têm sido complexos, por vezes impeditivos, o que vale para outros modos de transporte.

Em tese, o trajeto mais curto é o ideal, o que raramente é encontrado na natureza. Daí a necessidade de obras, cujo objetivo básico é o de superar obstáculos, aproximando cidades, reduzindo custos logísticos, beneficiando milhares, por vezes milhões de pessoas, de forma direta e indireta.

Mas mesmo quando a Engenharia encontra soluções que conciliam questões ambientais, sociais e econômicas, nem sempre elas são implantadas, quando não demoram anos para serem autorizadas, o que não raro torna os projetos tecnologicamente defasados.

Alguém pode dizer que isso é bom, pois podem surgir soluções melhores, com tempo. Porém, qualquer alteração que ocorra tende a implicar em nova demora, o que nem sempre é apenas uma consequência, mas uma intencionalidade.

No caso específico da Região Metropolitana da Baixada Santista (RBMS), ao menos desde 2010 é discutido o aproveitamento hidroviário para o transporte de carga e passageiros. Em verdade, o transporte de passageiros existe há muito tempo, por meio de travessias. O de cargas ocorreu por muito tempo, basicamente de produção local, com destaque para bananas, que foi descontinuado há décadas.

Uma empresa de Cubatão cogitou transportar sal do Porto de Santos para sua unidade industrial por meio de barcaças. A estimativa era de que o sistema substituiria aproximadamente 60 mil viagens de caminhão por ano. Após vários anos, o licenciamento ambiental restringiu o calado operacional das barcaças, o que inviabilizou economicamente o projeto inicial.

O argumento que serviu na Europa, não serve aqui.

É possível um aproveitamento hidroviário ambientalmente sustentável na RMBS?

Bem, o transporte hidroviário entre o Planalto e a região seria de extrema complexidade, também sujeito a licenciamentos ainda mais complicados. Também faz sentido, logisticamente, fazer transbordo de cargas que chegam por ferrovia e rodovia para barcaças, mas seria um custo a mais.

Assim, o transporte hidroviário de cargas, aqui, só seria viável mediante produção local, como foi no caso das bananas. O ideal é que essa produção seja de cargas de maior valor agregado, industrializados, preferencialmente associados à tecnologia. Os principais portos do mundo têm parques industriais em suas proximidades, e não são empresas fumacentas ou que despejam resíduos em mananciais.

Mesmo assim, os licenciamentos ambientais serão complexos e demorados.

Nesse sentido, o Brasil, apesar de ser protagonista na geração de energia por fontes renováveis, vive marcando passo ou correndo atrás da cenoura, sendo que ainda pode haver exigência que ela seja orgânica.

Mas, mesmo que fiquemos pelas opções terrestres, rodoferroviárias, é preciso entender sustentabilidade de forma menos enviesada, buscando entender que o custo de não fazer pode ser muito maior do que o de fazer, com implicações socioambientais talvez até mais importantes.

As cobranças externas que o Brasil recebe são diretas e indiretas, incluindo ameaças de retaliações econômicas e insinuações sobre soberania territorial – a globalização seletiva – ou sobre o suporte financeiro a quem se presta a, conscientemente, oportunisticamente ou inocentemente, atender seus interesses.

O Porto de Rotterdam construiu Maasvlakte 2 mar adentro, e já planeja expansões. A ligação entre a área urbana de Hong Kong e seu aeroporto é feita por rodovias e ferrovias construídas sobre um aterro, também mar adentro. O próprio aeroporto foi construído a partir do desmonte de duas ilhas. Esses são apenas alguns exemplos de obras portentosas executadas no exterior, que seriam consideradas crimes ambientais no Brasil. Por que foram feitas, lá? Talvez porque a avaliação que as precedeu considerou todos os aspectos envolvidos, pesando prós e contras.

Agora, a França – que exige contrapartidas ambientais exorbitantes do Brasil, para viabilizar o Acordo da Associação Mercosul-União Europeia – iniciou a construção de uma hidrovia de 107 quilômetros, com 54 metros de largura, ao custo de R$ 25 bilhões, para escoar sua produção. A justificativa ambiental está na redução de poluição, pois o governo francês estima que cerca de 800 milhões de caminhões serão retirados das estradas. E não é só isso: pretendem concluir a obra até 2030!

E tem mais: ao que consta, seu trajeto inclui áreas onde ocorreram batalhas na Primeira Guerra Mundial, conflito caracterizado por uso de trincheiras, onde milhares de soldados pereceram. Seria possível “cravar” um prazo como esse aqui?

Não se trata de justificar que aqui se pode fazer o que lá não é permitido, ou de confrontar quem nos cobra com suas contradições, ambiguidades, narrativas e hipocrisias. Mas é preciso encontrar caminhos mais razoáveis, racionais e ágeis para que o Brasil se desenvolva de forma equilibrada, sem radicalismos e com visão holística.

Só assim seremos, de fato, uma nação autodeterminada, e não um país eternamente condicionado pelos interesses de quem não faz sua lição de casa, mas vive a ditar regras aos outros. 

 

Compartilhe:
TAGS Europa Mercado Comum Europeu Plano Marshall Segunda Guerra Mundial

Leia também