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Luiz Dias Guimarães

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Enquanto cantar o sabiá

“Há uma letargia nas políticas governamentais, há também um ritmo lento nas iniciativas privadas devido ao risco de comprometer a saúde financeira das organizações e desequilibrar a economia do planeta. E há, em ampla dimensão, uma névoa a encobrir às vistas individuais o que está por vir. Afinal, o perigo nos assusta e gera mal-estar”

Ouço o canto do sabiá no imenso jardim em que passo os meus dias trabalhando. Isso é que importa, ter um jardim e um sabiá. Frequentemente crianças visitam este lugar cuja história remonta a 1532. Suspeito que sempre foi frequentado por pássaros. Mas não sei por quanto tempo mais.

Ainda estou sob o impacto da notícia. A WWF, organização internacional não governamental, divulgou relatório denunciando que nos últimos 50 anos o mundo perdeu em média 73 por cento da vida selvagem. Na América Latina, 95 por cento. O levantamento, feito em parceria com o Instituto de Zoologia de Londres, monitora populações de 5.495 espécies de mamíferos, aves, anfíbios, répteis e peixes.

É apenas uma das facetas da crueldade que estamos fazendo com nosso mundo, e temos só cinco anos para não atingir o ponto de não retorno. Cinco míseros anos para reequilibrar o sistema. O desequilíbrio ambiental – alerta a WWF – é geral. A vida sempre funcionou assim, como se o homem equilibrasse pratos chineses girando na ponta das varas. Agora os pratos de louça estão girando trôpegos como se o sol e a lua fizessem curvas no céu.

O que fizemos nós? Por que não nos preocupamos antes até que soassem gemidos desse moribundo? Quem mexeu no meu queijo, antes disposto em imensas prateleiras que alimentaram tão vasta história?

Não, não relatarei mais detalhes do trágico relatório, mais um soar de trombeta entre tantos outros nos últimos tempos. Não buscarei culpados. E não pesquisarei detalhes das espécies que se extinguem, como os botos cor de rosa que tiveram um declínio de 65 por cento. Afinal, mesmo me encantando com sua formosura e iludido com as lendas, não pretendo ir à Amazônia, porque, confesso, ainda lá resistem répteis e outros animais que não quero por companhia, ainda que reconhecendo a importância deles para o equilíbrio dos pratos.

Esse descaso com a fumegante Amazônia, uma das maiores vítimas do processo, assim como os corais hoje esbranquiçados nos recifes, até que ponto não é só aparente? Eis o xis da questão, o quanto nos preocupamos e agimos suficientemente para nos salvar.

Há uma letargia nas políticas governamentais, há também um ritmo lento nas iniciativas privadas devido ao risco de comprometer a saúde financeira das organizações e desequilibrar a economia do planeta. E há, em ampla dimensão, uma névoa a encobrir às vistas individuais o que está por vir. Afinal, o perigo nos assusta e gera mal-estar.

Fato é que fugimos da trágica realidade. O imediatismo da vida, com seu rigor tanto para realização de prazeres como para enfrentamento dos problemas, nos deixa com ouvidos moucos. Então não ligamos para os distantes furacões, maremotos, incêndios, secas e outros sinais.

Neste fim de inverno confesso ter-me incomodado com o vento. Talvez seja o avançar da idade. Antes o vento me despertava românticas sensações, trazendo frio ou calor. Desta vez não, e inúmeras vezes me incomodei com seu rigor. Mas penso como será a vida sem vento benfazejo. Sem o respirar profundo das montanhas. Sem a matreirice das borboletas, o frescor das flores e o sabor dos peixes que até então me alimenta.

Serei eu egoísta ao não agir o suficiente para movimentar os pratos? Às vezes penso que de alguma maneira passei a vida a me deliciar com os queijos na prateleira, sem pensar que um dia eles acabariam. É que fiquei enfeitiçado com o canto do sabiá neste jardim, palco da minha própria sinfonia.

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