Escolhas e sonhos derretidos
O domingo surpreendeu a todos e derreteu o sonho. Somos livres para sonhar, mas incapazes de garantir sucesso. Amanheci deparado com um ônibus na beira da praia de Santos despejando trinta pessoas, metade crianças, debaixo de chuva, vento e desilusão. Certamente não fora o que sonharam alguns por tanto tempo em seu mundo distante do oceano. Talvez seja o mar o maior espetáculo da natureza, que para muitos só existe na fantasia até que sua bruma se transforme em bolhas de emoção.
Concentrei meu olhar nas crianças, algumas escondidas em capas e sacos plásticos feitos de chapéu. Outras em trajes que antecederiam o mergulho, convertendo milagrosamente a fantasia em inesquecível lembrança. Talvez fosse o primeiro encontro, como inesquecível é sempre a primeira sessão de cinema com mãos dadas. Mas as mãos dessas crianças estavam molhadas e frias.
Correram todos para a ironia do destino coletivo: tentaram se abrigar em torno do Posto 4, sede do Cine Arte, àquela hora fechado, onde há anos o público vive fantasias. Fora, naquele momento, só o rigor da desilusão. Fiquei pensando no sentimento daquela gente e no rumo que tomariam todos. Na vida as decisões determinam os caminhos.
Os minutos foram passando e a realidade reprogramava aquelas vidas. Eram momentos decisivos que poderiam salvar o dia, enterrar de vez a esperança ou garantir forte gripe. Cada grupo teria que decidir, certamente o que não esperavam fazer. Afinal, apenas queriam se entregar ao deleite de um dia farto de sol na desejada praia. Mas a realização de um sonho depende de muito esforço, mas também do clima e do tempo. Tivessem vindo na véspera e aquelas crianças teriam levado a melhor lembrança do dia em que se fundiram com o mar.
Nessa surpreendente realidade, o que fazer? Que rumo tomar por algumas horas, diante de tanto infortúnio? Meia hora depois, voltei à janela, preocupado e compadecido sem nada poder fazer, para ver que decisões tomara o grupo. Alguns deixaram a orla e se embrenharam cidade adentro, talvez em busca de uma padaria ou ao menos uma marquise confortável, o que requer coragem para enfrentar um mundo desconhecido.
Um pai corria na areia atrás de um menino saltitante, indiferente aos pingos e ao vento, numa evidência de que para eles nada impediria o desejado encontro. Outra família permanecia grudada à parede do Posto 4, à espera que a sorte chegasse – ou sem saber o que esperar. E uma menina de vestido azul esvoaçante corria em roda com as migalhas de seu sonho enquanto os pais ainda se esgueiravam grudados na encharcada parede. As escolhas determinam o caminho – ou findam com ele.
Adiante, duas senhoras encolheram seus netos no banco do próximo abrigo, sem esperar por qualquer ônibus. Talvez apenas a melhora do tempo, ou quem sabe temiam tomar qualquer decisão. A inércia às vezes é a melhor solução diante do desconhecido. E isso pode gerar eterno arrependimento.
A cena me fez lembrar do dia na minha juventude em que depois de viajar mais de vinte horas de ônibus pelo norte da Argentina, desembarquei no meio da neblina numa plataforma em Puerto Iguazu. Era o ponto final da viagem, poucas pessoas desceram e se espalharam na madrugada. Eu, sem saber onde estava e o que haveria alguns metros adiante em qualquer direção, apoiei-me na mala, me enrolei num jornal, e me quedei – tal qual aquelas duas senhoras que talvez pouco esperassem da vida, apenas propiciar felicidade aos netos.
Na plataforma de Puerto Iguazu, contava o tempo à espera do alvorecer para me guiar. Até que foram surgindo os primeiros raios de sol que anulavam a névoa e expunham, junto com um crescente alarido, uma rua repleta de hotéis e restaurantes diante de meus olhos perplexos e arrependidos.
Talvez fosse o caso das duas senhoras. Tive o ímpeto de me aproximar e conversar com elas, tentando neutralizar seu imobilismo, caso ainda sonhassem salvar o sonho que se esvaía naquelas crianças inertes em seu capuz.
Mas já era meio-dia, o céu dera uma trégua, e vida que segue. Certamente ainda havia tempo para cada um, independente das escolhas, catar o sonho em frangalhos que transformou uma história de amor pelo mar em outra com sabor de tragédia. Como o enredo do filme que passaria logo mais na tela do Posto 4, numa irônica interpretação da vida.