Eutanásia do gigante
Vaga exilado um gigante no mar. O mundo acompanha o destino que se lhe dará. Talvez a esta hora já tenha ocorrido o funeral. Levado em vida ao cemitério de Aliaga, onde transplantariam alguns de seus órgãos e enterrariam a carcaça, nem os turcos o quiseram. O velho e carcomido porta-aviões São Paulo vive seus últimos suspiros no leito do mar. Tudo poderia ser mais fácil não fosse portador de tanto amianto.
A eutanásia lhe poupa o sofrimento e o tira do olhar do mundo, já que não sabemos como lidar com seu gigantismo, mal que assola nossa existência.
O velho aeródromo francês que muito nos custou mas não nos serviu, vive um mal de família. Clemenceau, embarcação de mesma classe, que significa dizer igual ao São Paulo, também vive dias de abandono e sofrimento. Não sou engenheiro naval, nem militar do mar. Mas vê-se que, afora o conteúdo tóxico, esses grandalhões se deram mal.
Não só eles. Na Virgínia há o mesmo dilema sobre o Enterprise, acometido de energia nuclear. Há também um feto gigante, um mega navio de cruzeiros que, prestes a nascer na Alemanha, não pode concluir a gestação por falência de seu fabricante e também deve ser eutanasiado com transplante de órgãos que renderão algum dinheiro nem que seja para o funeral. Lembro ainda de Belugas, aviões cargueiros com cara da baleia que também estão pousados na França ao léu.
No caso do São Paulo, ele sofre da maldição do nome, diriam os místicos. Não pelo santo, tampouco pelo estado e sua capital. Tempos atrás um encouraçado de mesmo nome findou no fundo do oceano. Por via das dúvidas em próximos nascimentos deve-se pensar em outro nome de batismo.
Sofre o velho porta-aviões como sofrem marinheiros que lá viveram uma história que agora afunda junto. Navios e marujos têm vida entrelaçada. É como um lar. Quantos desafios enfrentaram juntos, vagalhões, temporais, inimigos.
Todos esses casos de monstrengos servem para refletir sobre o gigantismo que assola a espécie humana. Haveria de existir um decreto que limitasse nossa sanha de fazer cada vez maior. Prédios, navios, aviões…
O ímpeto do gigantismo tem muitos reflexos e dimensões. Essa doença vale para a cobiça, para a ganância, para a beligerância. Vale também para o ódio, até para nossos sonhos.
Viver requer medir as consequências dos sonhos. Não vivemos sem sonhar, isso é o que nos impulsiona na vida. E às vezes sua realização sofre revés à revelia. Einstein não desejou a bomba atômica. Alguém achou que as telhas que nos abrigariam seriam bem-vindas com amianto. O mesmo pensamento de quem usou o elemento para proteção térmica e acústica do corpo do porta-aviões moribundo.
Mas outras vezes há como avaliar consequência e não o fazemos por pura ganância e soberba. E aí então prejudicamos o mundo. O mundo que herdamos ao nascer e para o qual temos o dever de deixar como legado no mínimo igual ao que recebemos, se não melhor, para nossos filhos.
O possível fim do São Paulo é simbólico. Planejaram afundá-lo a 200 quilômetros da costa. Nada mais do que a eutanásia para aquele que um dia nasceu para nos defender sem que se pensasse no tamanho da sua cova, tampouco no perigo que traria seu chorume ao fundo do mar.
Produzimos muitos restos a sufocarem o planeta. Nesses casos, são restos do gigantismo que, com amianto ou sem, ficam esfacelados como herança por pensarmos desmedidamente no cada vez maior. Nossos sonhos não sabem quando parar. E agimos varrendo as consequências debaixo do tapete. Neste caso é a insensatez varrida para longe das nossas vistas e a repousar agora no fundo do oceano.