Ferrovia Transoceânica ou Transulamericana?
A ideia de conectar os oceanos Atlântico e Pacífico, cruzando a América Latina de leste a oeste, não é nova. E várias são as alternativas e iniciativas existentes. Hoje, o objetivo comum é revolucionar as relações comerciais e logísticas entre a América do Sul e a Ásia, reduzindo custos e tempo de transporte.
País de vasta extensão territorial e a mais importante economia do continente, fazendo fronteira com quase todos os países sul-americanos, dificilmente o Brasil contará com apenas uma única ligação dessa natureza. A questão está em quantas, quando e por onde.
Enquanto se discute a ligação ferroviária entre o Atlântico e o Pacífico, a região Sudeste passará a contar, em breve, com a Rota Bioceânica, também conhecida como Rota de Capricórnio, em avançado estágio de implantação.
Trata-se de um corredor rodoviário com 2.396km de extensão, unindo Brasil, Paraguai, Argentina e Chile, que prevê uma redução de 9,7 mil quilômetros em relação ao percurso atual e de 12 dias no tempo de viagem. Prioridade indiscutível, a Rota Bioceânica também deverá contar, posteriormente, com uma via ferroviária.
Um outro traçado cogitado é o do Corredor Ferroviário Bioceânico Central, ligando Santos-Campo Grande-Corumbá, no Brasil, a Puerto Suarez, na Bolívia (aproveitando a linha férrea que vai de Corumbá a Puerto Suarez), até alcançar o Porto de Ilo, no Peru. Objeto de reunião realizada agora em março e com orçamento de US$14 bilhões, o projeto boliviano contaria com financiamento da Alemanha e da Suíça.
O objetivo da Bolívia é evitar o uso dos portos no norte do Chile – por onde passam, atualmente, 80% das suas exportações – em face de seu litígio histórico por uma saída soberana para o mar. Paraguai, Uruguai e Argentina poderiam acessar a ferrovia através de Puerto Quijarro, na Bolívia, ponto de ligação com a hidrovia Paraguai-Paraná.
No Brasil as discussões têm girado em torno da ligação ferroviária Brasil-Peru. Trata-se de uma iniciativa binacional à qual, a partir de 2014, juntou-se a China, quando foi firmado um acordo entre os governos dos três países, para financiamento e estudos da ferrovia.
Do ponto de vista chinês, a participação se justifica no âmbito da Iniciativa Cinturão e Rota, uma vez que a relação econômica entre a China e a América do Sul tem crescido, substancial e continuamente, nos últimos anos, com o comércio bilateral ultrapassando a marca de US$ 490 bilhões.
O projeto fora incluído no Plano Nacional de Viação em 2008, designado como EF-354, tendo como início o Litoral Norte Fluminense, até a fronteira Brasil-Peru, em Boqueirão da Esperança, no Acre. Tratada, ora como ferrovia bioceânica, ora como transcontinental ou transoceânica, mostra um viés equivocado em sua conexão no litoral brasileiro.
Contudo, a Lei n. 11.772, de 2008, incluiu também a EF-334, com início em Ilhéus (BA), chegando até Lucas do Rio Verde (MT). Como se vê, foram então institucionalizadas, como um único estirão, a Ferrovia de Integração do Centro Oeste (Fico) e a Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol).
Do mesmo modo, concedeu à então Valec, atual Infra, a responsabilidade pelo trecho de Campinorte (GO) a Porto Velho (RO), destacado como prioridade. Esse segmento tem 1.641 km de Campinorte a Vilhena (RO), além de mais cerca de 770 km até Porto Velho.
O traçado da EF-334, tanto no seu trecho Fico, como no trecho Fiol, tem passado por revisão, melhoria e ajustes. A Fico foi deslocada de Campinorte e a Fiol de Figueirópolis (TO), ambas para Mara Rosa (GO), no cruzamento com a Ferrovia Norte Sul, seguindo daí traçado comum até a divisa com o Peru. Observe-se que o trecho de Mara Rosa a Vilhena apresenta superposição entre as EF-354 e EF-334, constituindo-se, na prática, em uma única via férrea.
Em 2015, o governo chinês comprometeu-se a financiar parte do projeto da EF-354, excluindo o trecho até o Porto do Açu. Em 2017 foi criado o Fundo Brasil-China, com recursos de US$20 bilhões, destinados principalmente à infraestrutura.
A proposta concreta de um corredor bioceânico no Brasil data, no entanto, da década de 1950, com a concepção da Ferrovia Transulamericana, pelo engenheiro Vasco Neto, seguindo, ao longo de todo o percurso, as linhas de menor resistência. Saindo da costa baiana, ele chegou ao porto de Bayóvar, no norte do Peru.
Este ponto de chegada no litoral peruano certamente será revisto agora, em face da Cosco, empresa chinesa de navegação, estar construindo em Chancay, ao norte de Lima, aquele que será o hub-port da costa do Pacífico na América Latina.
No território brasileiro, a Fiol I – trecho Ilhéus-Caetité está hoje concedida à Bahia Mineração (Bamin), tendo seu início de operação previsto para 2027. A Fiol II – trecho Caetité-Barreiras, com implantação a cargo da Infra S.A., empresa do Governo Federal, está licitando as obras do último lote. Neste trecho encontra-se concluída, inclusive, a imponente ponte sobre o rio São Francisco, a maior ponte ferroviária da América Latina!
A Fico I – trecho Mara Rosa (GO)-Água Boa (MT), com 383 km de extensão, encontra-se em implantação pela VLI, mediante protocolo de investimentos cruzados, em pagamento pela renovação antecipada de sua concessão da EF Vitória-Minas.
Pendências decisórias remanescem em relação ao novo traçado da Fiol III, em direção a Mara Rosa, a ser incluído na concessão conjunta com a Fiol II e Fico I, e o futuro da renovação antecipada da FCA, para permitir a ligação, também ferroviária, da Fico-Fiol, a partir de Brumado, com a Baía de Todos os Santos.
Resulta evidente que, a partir da configuração do Corredor Centro-Leste – a que dá origem o eixo formado pela Fico-Fiol –, o caminho a ser percorrido pelo Brasil é o da implantação do projeto Transulamericana, que mais atende aos interesses nacionais, com o propósito de promover desconcentração espacial da economia, correção dos desequilíbrios regionais de desenvolvimento e aproveitamento das excelentes condições portuárias da Baía de Todos os Santos.
Em um cenário de restrição fiscal ao investimento público direto, resta não claudicar na implantação do eixo Fico-Fiol, cujos cronogramas e prazos ainda não estão claros para a opinião pública, não obstante as diversas frentes de obra em andamento e apesar da política de concessões e autorizações ferroviárias adotada.
Antes de tornar-se a gênese do eixo ferroviário de ligação do Pacífico ao Atlântico, a EF-334, configurando o Corredor Centro-Leste, fruto da integração Fico-Fiol, antecipará e entregará importantes resultados econômicos e sociais para o País.