Indústria e exportação
“O risco concorrencial para as empresas já instaladas no País, permanece, caso a produção já exista por aqui. Mas, francamente, não faz sentido ter empresas que produzam exclusiva ou majoritariamente para o mercado interno numa ZPE”
A participação da produção industrial nas exportações brasileiras poderia ser bem maior.
Espera-se que com a reforma tributária ela seja incrementada, mas é preciso agregar valor a ela, o que significa incorporar pesquisa científica, tecnologia e inovação.
É fato que o Brasil tem uma tradição agropecuária secular, que atualmente é referência mundial em qualidade e produtividade. A exportação de minérios também é significativa, mas ambas têm em comum serem commodities de baixo valor agregado. Em vários casos, sua operação portuária é bastante susceptível a condições climáticas.
Certa vez perguntei a um especialista em agronegócio porque não exportávamos produtos industrializados do agronegócio. Em resposta, ele afirmou que nossos principais importadores, sobretudo a China, ao longo do tempo haviam implantados plantas industriais próximas a seus portos, com esse objetivo.
Sim, a China não só se preparou para industrializar as “commodities” que importa, como também criou milhares de Zonas Econômicas Especiais, com plantas industriais, com foco em exportações, igualmente próximas a complexos portuários.
Graças a isso, a China passou da condição de economia insipiente e industrialização medíocre e obsoleta, para se tornar o “armazém do mundo”, produzindo do alfinete ao foguete, com agilidade, qualidade, inovação e competitividade.
Historicamente, o Brasil era um grande importador de equipamentos, veículos e estruturas, sobretudo de países como Inglaterra, França, Alemanha e, já no século XX, dos EUA.
Nossas primeiras indústrias eram majoritariamente dos setores alimentício e de vestuário.
Uma síntese do processo evolutivo de industrialização poderia ser: 1. Importação (sinônimo de dependência tecnológica); 2. Engenharia Reversa (reprodução de produto importado); 3. Transferência de tecnologia (aprendizado, assimilação de conhecimento); 4. Pesquisa científica (compreensão e produção de conhecimento); e 5. Registro de patentes (exportação de alto valor agregado e “royalties”).
A China, num curtíssimo espaço de tempo, passou com louvor por todo esse processo. Parte dele incluiu o envio de estudantes para as melhores universidades do mundo, criando condições para que retornassem, por meios mais interessantes do que os empregados por outras ditaduras comunistas.
As vantagens que ofereceram para as grandes corporações se instalarem em suas Zonas Econômicas Especiais, rapidamente reverteram em favor da China, com vantagens econômicas e sociais, também favorecendo o consumo interno.
A Índia vem seguindo o mesmo caminho bem-sucedido, o que não ocorre com os outros três países originários.
Segundo estimativa do Fundo Monetário Internacional, a participação dos países do BRICS no PIB mundial, em 2024, será de: China, 18,25%; Índia, 3,88%; Brasil, 2,30%; Rússia, 2,03%; e África do Sul, 0,41%.
Já quando o assunto é exportações, segundo a World Trade Statistical Review 2023, em 2022, esses mesmos países participaram com os seguintes percentuais: China, 14,4% (incluindo Hong Kong, 16,8%); Índia, 1,8%; Brasil, 1,3%; Rússia, 2,1%; e África do Sul, 0,5%.
Segundo a Confederação Nacional das Indústrias (CNI), em 2022 a participação da indústria de transformação nas exportações mundiais desses países foi de: China, 18,21% (incluindo Hong Kong, 16,8%); Índia, 2,43%; Brasil, 1,05%; Rússia, 2,1%; e África do Sul, 0,5%. O Brasil está atrás do México, nas Américas.
Desde 2023, tanto o governo federal, como o estadual paulista propõem a reindustrialização e neoindustrialização, com foco em exportações. Trata-se, em tese, de uma evolução em relação ao ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial, em que a industrialização brasileiras ocorreu por conta da substituição de importações; e guarda similaridades com a implantação da indústria automobilística no Brasil, na década de 1950. Atualmente, embora não haja uma indústria genuinamente nacional, técnicos brasileiros desenvolvem tecnologias que são utilizadas mundialmente pelas montadoras aqui instaladas.
A indústria aeronáutica é um “case” de sucesso, tendo a Embraer como referência mundial, criada em 1969 a partir de iniciativa visionária de Ozires Silva. Ela contribui para o desenvolvimento de um complexo industrial de ponta, sendo talvez a principal empresa retentora de inteligências do Brasil, no âmbito do desenvolvimento tecnológico.
Cá entre nós, ser competitivo no mercado internacional, com a legislação tributária do Brasil, poderia ser considerado o 13º trabalho de Hércules.
É importante destacar que produtos associados à propriedade intelectual são itens de exportação de alto valor agregado, em razão dos “royalties” decorrentes de patentes.
Lembrando do processo evolutivo da industrialização, a China passou rapidamente da “engenharia reversa” da reprodução não-autorizada, para se tornar a maior produtora de patentes da atualidade: P&D na “veia”!
Para tanto, continua investindo forte e estrategicamente na formação e qualificação de pessoas, dentro e fora do país, e em recursos para o desenvolvimento de pesquisas científicas! E esses profissionais, apesar das características ideológicas do governo chinês, têm seus méritos reconhecidos financeiramente. Sim, a meritocracia existe na China!
A Reforma Tributária em processo acena com incentivos à indústria, no entanto, a disputa sobre a desoneração da folha de pagamento permanece, Brasil dos paradoxos.
A indústria de transformação, no âmbito das exportações, dispõe de alguns benefícios dispõe de alguns incentivos, como os da Zona Franca de Manaus e, de forma mais ampla, do “draw back” e das Zonas de Processamento de Exportação (ZPEs).
No caso específico das ZPEs, cuja legislação foi definida no final dos anos de 1980, elas poderiam ser pleiteadas por estados, municípios ou ambos.
A China adotou o modelo de Zonas Econômicas Especiais (ZEEs), similar ao de ZPEs, a partir do final da década de 1970, e hoje tem mais de 2.500, a maioria próxima a portos e aeroportos, com resultados extremamente positivos no desenvolvimento tecnológico e científico daquele país.
O marco legal de ZPEs anterior previa que 80% da produção fosse destinada à exportação, com os 20% restantes podendo ser comercializados internamente, porém, obedecendo ao regime geral.
Alguns setores da indústria nacional as consideram um risco concorrencial. Isso é compreensível, caso as ZPEs sediassem produção já existente no País. Não à toa, a legislação restringia a implantação de filiais de empresas nacionais nas ZPEs.
Como a proposta das ZPEs é de industrialização em áreas menos desenvolvidas, as Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste foram consideradas preferenciais. No caso das Regiões Sul e Sudeste, as capitais foram excluídas, e o critério de regiões “menos desenvolvidas” foi estabelecido em função da participação percentual do valor adicionado da indústria sob o valor adicionado total dos municípios, com base em dados do IBGE, que deveria ser inferior à média nacional, que atualmente é de aproximadamente 25%. Ainda assim, a preocupação concorrencial permanecia.
A revisão do marco legal de ZPEs, de 2021, manteve os critérios de qualificação, mas
acrescentou importantes e necessárias alterações.
Uma ZPE agora pode ser instalada em terrenos diferentes, desde que distem entre si de, no máximo, 30 km.
Não há mais restrição quanto a exportação, ou seja, a produção pode ser totalmente
direcionada ao mercado interno, mantida a regra geral.
O risco concorrencial para as empresas já instaladas no País, permanece, caso a produção já exista por aqui. Mas, francamente, não faz sentido ter empresas que produzam exclusiva ou majoritariamente para o mercado interno numa ZPE.
A proximidade de portos e aeroportos passou a ser explicitamente considerada como trunfo logístico. Considerando que ambos são os principais polos de movimentação de cargas do comércio exterior do Brasil, isso é de uma obviedade “ululante”, como diria Nelson Rodrigues, considerando a redução dos custos logísticos envolvidos que potencializa.
Outra novidade, replicada de outros setores, foi a possibilidade de uma ZPE ser autorizada a um ente privado. Aracruz, no Espírito Santo, foi a primeira autorizada. Que venham outras, muitas, pois o Brasil precisa diversificar sua carteira de exportações, reduzindo sua dependência do agronegócio e do extrativismo mineral, majoritariamente “commodities” de baixo valor agregado, que percorrem longas distâncias entre a origem e os portos.
O que basicamente não mudou do marco legal anterior foi a burocracia. No caso de Santos, a implantação de uma ZPE vem sendo estudada desde 2017,
quando a cidade foi considerada apta a sediar uma ZPE, pelo critério de valor adicionado. A legislação municipal de uso e ocupação do solo da Área Continental favorece sua implantação, também beneficiada pela existência de acessos rodoviários, ferroviários e aquaviários. O Aeroporto Regional do Guarujá – que bem poderia ser batizado com o nome do Padre Voador, Bartholomeu de Gusmão – disponibilizará o modo aeroviário, posto que também prevê a operação de cargas.
A proximidade do principal complexo portuário do Brasil é um inquestionável trunfo logístico. Além disso, vários empreendimentos em estudo/execução contribuirão para melhorar sua capacidade, tais como: novo acesso entre o Planalto e a Baixada, túnel Santos-Guarujá, obras da Ferrovia Interna do Porto de Santos (FIPS) e dragagem de aprofundamento do Canal do Estuário.
A Reforma Tributária terá implicações tanto na Zona Franca como nas ZPEs, que podem ser apenas em função da concentração de tributos na Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e no Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Por conta disso, o marco regulatório de ZPEs precisará ser ajustado.
O Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) é protagonista no processo de industrialização/neoindustrialização do Brasil, também por ter em seu organograma o Conselho Nacional de Zonas de Processamento de Exportação (CZPE).
O Ministério de Portos e Aeroportos (MPor) é evidentemente tão protagonista quanto o MDIC, o mesmo valendo para o Ministério dos Transportes, pois não há como dissociá-los. Essa integração também vale para as agências reguladoras pertinentes, ANTT e ANTAQ, pois as infraestruturas de acesso terrestre e aquaviário devem atender e, preferencialmente, antever demandas. Não é diferente para os responsáveis pelo planejamento estratégico, e para os incumbidos de receber e agilizar processos.
Por conta disso, entrei em contato com o MPor e com a Infra S.A., responsável pela elaboração dos Planos Mestres portuários e do Plano Nacional de Logística – 2035 (PNL), sugerindo que as revisões desses planos também incluam a análise de portos e aeroportos com potencial para a instalação de ZPEs em suas imediações, prospectando a tipologia de indústria mais adequada a ser nelas implantada.
Já com relação ao CZPE, a sugestão foi o passo seguinte, ou seja, de posse do PNL 2035 assim elaborado, passar da condição de receptor de propostas, para a de fomentador. Explico: Uma vez tendo a definição de “locus” ideal para novas ZPEs, incluindo a tipologia de cargas a ser produzida em suas instalações, o CZPE poderia fazer Chamamentos Públicos, identificando interessados públicos e privados.
Isso não impede que eventuais interessados procurem o CZPE, para obter informações. E quando a risco concorrencial em relação às indústrias já instaladas no Brasil?
Novamente, vale ponderar que não faz sentido implantar uma planta industrial voltada majoritariamente para produção já existente e suficiente no mercado interno, uma vez que a carga tributária será a mesma, talvez com custos de distribuição ainda maiores.
Nesse sentido, reindustrialização não precisa nem pode ser “mais do mesmo”: é preciso diversificar e inovar!
Uma palavra que vem sendo bastante usada nos discursos governamentais é “neoindustrialização”, definida como processo de modernização e reestruturação da indústria brasileira, com foco na inovação e diversificação das cadeias produtivas.
Em 2022, o Brasil foi considerado o maior exportador mundial de alimentos industrializados, mas ainda assim de baixo valor agregado.
A participação da indústria de transformação nas exportações brasileiras foi de 2,7%,
com destaque para veículos e aeronaves.
Em contrapartida, o Brasil importa componentes eletrônicos e medicamentos.
Seria o caso de um novo processo de substituição de importações?
Bem, se vier associado à transferência de tecnologia, pode ser. A China fez isso, com suas ZEEs. Nossas Forças Armadas têm buscado esse tipo de solução, em parceria com empresas privadas nacionais e estrangeiras, casos dos caças supersônicos Gripen NG (parceria com a Saab, sueca), dos submarinos Classe Riachuelo (derivados da Classe Scorpène, francesa), e das fragatas Classe Tamandaré (derivada da Família MEKO, alemã), para citar três referências.
Da transferência de tecnologia para P&D é um caminho não tão longo.
Assim, não seriam apenas novas substituições de importação, para atender o mercado interno, mas identificação do que não produzimos, que tenha potencial para competirmos no mercado internacional: transformar produtos manufaturados atualmente importados em itens de exportação.
Exportamos café em grãos, mas importamos cápsulas. Exportamos minérios para importar produtos manufaturados a partir deles.
Quais os nichos de mercado que o Brasil poderia concorrer e com quais produtos?
O Governo Federal já fala em produção de processadores e semicondutores no Brasil.
Será difícil concorrer com a China, pois até quem defende ideologicamente o sistema de governo chinês, jamais aceitaria a legislação trabalhista de lá, aqui.
No caso específico de Santos, alguns dos produtos e atividades a serem desenvolvidas
em plataformas industriais, ZPEs ou não, poderiam ser:
- Montagem de equipamentos pesados (em vez de grandes volumes vindos do interior, partes viriam por contêiner ou vagão, para montagem local);
- Montagem/Customização de veículos (inclusive híbridos e elétricos);
- Química fina;
- Farmacêutica;
- Semicondutores;
- VANTs (drones);
- Painéis e dispositivos fotovoltaicos e eólicos;
- Equipamentos para smart cities;
- Robótica;
- Informática;
- Peças e equipamentos para indústria naval;
- Embarcações de lazer e competição;
- Powershoring; e
- Hidrogênio “verde” (eletrolisadores, etc.).
Outra opção, não excludente, seria atrair empresas que produzem em ZEEs, para nossas ZPEs, incluindo produtos atualmente importados da China, que possam ser competitivos, no âmbito do Hemisfério Sul e Américas, também contribuindo para a redução de desigualdades econômicas regionais.
Iniciativas de P&D podem gerar novos produtos, novas patentes, neoindustrialização.
Resumo da ópera: As ZPEs não precisam ser consideradas um risco concorrencial, mas como um fator de expansão, aprimoramento e diversificação da carteira de exportações do Brasil, além de porta de entrada para produtos atualmente importados, que não têm similar nacional. E nada impede que novas indústrias nacionais se instalem nelas.
Dificilmente recuperaremos as décadas que nos separam tecnologicamente dos países desenvolvidos. Só que a China fez isso em curto espaço de tempo. Não apenas recuperou, como vem superando, talvez por não ter os múltiplos entraves que temos no Brasil e, principalmente, porque o desenvolvimento econômico, lá, é estratégico.
E não se alegue que isso ocorre pela excelência de seu regime político, pois temos exemplos no extremo oposto.
Nosso País já serviu de exemplo para outros países. Nos anos de 1970, a Coreia do Sul adotou o modelo de educação utilizado no Brasil, e hoje é uma potência industrial, que, mesmo sendo uma efetiva democracia, rivaliza com a China.
O desenvolvimento econômico é diretamente proporcional à redução do risco de tensões sociais, e o progresso é muito mais efetivo, nesse sentido, do que o progressismo proselitista.
O Brasil precisa reavaliar sua condição, mesmo que isso represente “trocar o pneu com o carro andando”, e encontrar caminhos mais objetivos para seu desenvolvimento socioeconômico e ambiental, sem radicalismos ideológicos e ideias fixas.
Precisamos robustecer nosso sistema educacional, investir em pesquisa e desenvolvimento tecnológico, e estimular atividades produtivas, geradoras de empregos, lembrando que para cada posto de trabalho criado na indústria, vários são criados em outros setores da economia.
Adilson Luiz Gonçalves
Escritor, Engenheiro, Pesquisador Universitário e membro da Academia Santista de Letras