Jabutis, jabuticabas e ornitorrinco
Algumas simbologias foram sendo incorporadas na cultura nacional, em especial quando se analisam as atuações públicas, dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
A jabuticaba é símbolo nacional, para a referência de práticas exclusivamente brasileiras. Algo que somente é criado no Brasil, segundo os seus defensores. Tal tradição afronta a realidade pois, embora seja um fruto nativo da Mata Atlântica brasileira, também pode ser encontrado na Argentina, no Paraguai, no Uruguai e até no México. Poderíamos, então, classificar de jabuticabas as práticas exclusivamente latino-americanas, se buscássemos atender à realidade. Porém não pretendo aqui desconstruir a histórica tradição nacional de afirmar ser tal delicioso fruto algo exclusivamente brasileiro e, portanto, símbolo das mirabolantes ideias de governantes, parlamentares, do Judiciário e de outros agrupamentos, que impactam em toda a lutadora coletividade brasileira.
Ainda nas tradições nacionais, a clássica anedota de se tentar entender como um jabuti apareceu no topo de um poste resultou no apelido para as emendas parlamentares incorporadas a projetos de lei ou medidas provisórias, sem que tenham efetiva relação com o tema central em debate.
Recentemente foi localizado, bem acima de um poste denominado Medida Provisória 1.154/23, um gordo e imponente jabuti.
Na Medida Provisória 1.154/23, editada pelo Governo Federal para formalizar a sua nova estrutura de poder, regularizando os novos ministérios, surgiu a Emenda Parlamentar 54, que, de forma resumida, pretende alterar a lei de criação de todas as agências reguladoras federais, subordinando as suas decisões e atos normativos a “conselhos” vinculados aos ministérios. Segundo o texto, os integrantes desses conselhos seriam representantes dos ministérios setoriais, da academia, dos usuários e do próprio órgão regulador setorial. O vistoso jabuti, sob a denominação de Emenda 54, na prática, propõe a extinção da autonomia decisória das agências, afrontando esse basilar princípio de todas as agências reguladoras dos países que as implantaram. A possibilidade de se retirar desses órgãos federais a competência normativa, ou seja, o poder de criar as normas setoriais, logicamente mediante estudos e consultas públicas, repassando-o para um conselho que, integrado por representantes de governo, das próprias agências, de empresas reguladas, dos usuários e da academia, geraria decisões políticas e não técnicas, não consta das melhores práticas mundiais e não sinaliza ganho, avanço ou melhoria na governança pública, na qualidade da regulação e na transparência das decisões. Pelo contrário, a medida aumentaria o risco regulatório e a insegurança jurídica, desestimulando a atração de investimentos privados tão necessários para o desenvolvimento brasileiro.
A criação, dentro de ministérios, de um “órgão administrativo julgador independente”, com duplo grau de jurisdição, com o objetivo de avaliar e decidir a respeito dos temas de contencioso administrativo das agências, ainda geraria flagrante conflito de competências e da radical mudança de modelagem em relação às parcerias entre o Poder Público e a iniciativa privada. Essa emenda parlamentar faria com que ninguém entendesse se os setores estariam sendo regulados por agências ou por conselhos. As agências teriam esse nome, porém não seriam agências de fato e os conselhos teriam essa denominação, porém seriam efetivos reguladores.
Esse cenário futuro indesejável nos remete a outra simbologia, que poderá se incorporar à tradição da cultura nacional: como bem denominou um mestre em uma videoconferência de que participei, essas seriam as “agências ORNITORRINCO”. Seriam como tais seres, que têm bico achatado mas não são patos, botam ovos mas são mamíferos. Será que além de jabuticabas, vamos agora nos aperfeiçoar na criação de entidades ornitorrinco, sendo aquelas que não conseguem se enquadrar em nenhuma clara classificação e misturam vários referenciais diferentes dos padrões?
Respeitamos as iniciativas dos parlamentares. Sempre imaginamos que atuam com os melhores dos propósitos. Com tais entendimentos, várias entidades estão se mobilizando para que tal emenda não prospere. A proposta do parlamentar autor da emenda, para a representatividade do setor regulado e de usuários, poderia ser aproveitada em outra iniciativa, para aplicação nas nomeações dos diretores das próprias agências reguladoras, que podem ser aperfeiçoadas e fortalecidas. As agências reguladoras vêm se desenvolvendo no Brasil e certamente ainda temos desafios a vencer, envolvendo o aprofundamento de estudos de impactos regulatórios, a garantia de nomeações técnicas para os componentes de suas direções e as garantias de efetiva independência administrativa financeira. Enfraquecer as agências reguladoras não auxilia o desenvolvimento brasileiro.
Já temos jabutis e jabuticabas em nossa cultura, por favor não incorporemos aquele doce animal australiano em nosso dia a dia.