Madrugadas perdidas
Vim à luz de pais certos, mas no tempo e lugar errados, por mais que goste de onde surgi. Mas queria que eles não tivessem se conhecido só no final da década de 40, no footing dominical, quando meu pai, de terno branco de linho engomado, se encantou com minha mãe, de vestido frufru, desfilando à porta do Café do Atlântico, em Santos.
Talvez eu seja um espírito recém-encarnado nos anos 50, morto quando o século XX engatinhava suas atrozes surpresas e celebrava com outros a vida que parecia, em Paris, uma inviolável fantasia.
Nunca vou saber, a vida apaga a memória do ser e às vezes lamento que os olhares de meus pais não tivessem se cruzado na Saint-Germain-des-Prés, antes da Europa viver a guerra. Então eu poderia estar, tempos depois, compartilhando a euforia intercalada com as tragédias, numa catarse ingênua à porta do Les Deux Magots.
Eu queria estar lá, discreto jovem sorvendo sobras das ideias que emanavam da mesa de Sartre e Camus quando comentavam os textos de Nietzsche, de Pessoa, as verdades de Freud e as pinceladas de Matisse, bem como as travessuras de Toulouse-Lautrec no Moulin Rouge.
É lá que eu queria estar, nem que fosse apenas para digerir às escondidas e compartilhar a euforia das jovens ao redor, disparando olhares furtivos antes de dançar cancan.
A noite era sempre longa nesse tempo, e grande a inspiração que exalava de taças de vinho e copos generosos de absinto. Isso sim era uma digna noitada, que se esticava até os primeiros raios de sol sobre o Sena.
Mas não nasci lá. E aqui, longe do glamour europeu, pude pegar apenas as sobras das madrugadas festivas em Santos, minha terra, quando a boca do cais se enchia de marinheiros e damas. Tive pouco tempo apenas para saborear o paulistano lirismo melancólico no cruzamento da Ipiranga com a Avenida São João, quando nossos menestréis faziam a ronda “a te procurar”.Naquelas madrugadas não havia o sopro da morte brutal, apenas morcegos e malandros que eventualmente, muito eventualmente, sacavam navalhas.
Na minha terra, encerrava os dias reverenciando as madrugadas ao final das aulas na faculdade, quando compartilhava a mesa com alunos, garotas de programa e meganhas no restaurante da Praça da Independência. Eram tempos ainda em que funcionavam até que mais ninguém houvesse no salão para pedir a saideira.
Ivani, parceira de escrita e poesia, acaba de me enviar mensagem. Leitora por gosto e ofício da Folha, mandou crônica do antenado Ruy Castro que alertou para a tendência da geração Z antecipar a madrugada. Observou que os jovens, por várias razões, estão preferindo curtir mais cedo, antes que a madrugada da Pauliceia se alastre nas esquinas do perigo.
Não sei se é real essa tendência, ao menos em Santos, onde há alguns anos eu propus que as casas noturnas fechassem mais cedo para evitar que a alegria culminasse num poste ao clarear do dia.
Tenho visto sim que os adolescentes, que até há pouco começavam no “esquenta” antes de se precipitar nas emoções da noite, agora fazem “resenha”, encontro geralmente em residências cujos pais preferem gerenciar as aventuras.
Se for mesmo uma tendência antecipar as baladas que à juventude se reservam, fico aliviado como pai. Mas como antiquado boêmio inveterado confesso minha saudade. A poesia que sempre me encantou é a forjada na noite escura do outono, não na luz da primavera.
Mas o tempo determina a liturgia do prazer. Não há de se buscar o que já passou. Os personagens que invejei hoje repousam em túmulos, livros e posts do fast food cultural. Não naqueles glamurosos bares-restaurantes, mesmo que ainda teimem em existir. Recentemente fui atrás de Hemingway no Marsella, bar em Barcelona que frequentava meu admirável ébrio escritor quando lá morou. No Marsella não se fala dele. Nem há seu nome rabiscado em algum resto de garrafa na empoeirada prateleira. Mas na esperança de captar sua alma, dei um trago no absinto. Que não teve o mesmo gosto de quando Paris era uma festa.