Murmuração dos estorninhos
“Sei que o belo não traz necessariamente o bem. E há de se distinguir na vida a obra do autor, como se possível fosse renegar a maternidade à sua cria. Mas é assim, espíritos artísticos podem germinar arte sem que os autores tenham o mesmo valor. O talento não tem senso. A palavra é em si independente de quem a diz. O belo pode ser prenúncio do mal que vem”
Encantam-me os estorninhos, que bailam aos milhares no céu, sincronizados ao sabor do vento ou de quem os guia. Em enormes revoadas sob inaudível melodia, fazem hipnótica dança tão sincronizada que, apesar das súbitas mudanças de direção, não se trombam. Nuvens salpicadas, tramas negras que desafiam o sol num festival de movimentos.
Que espantosa demonstração de beleza vi no céu da Sardenha, arrebatando emoção como sinfonia. Lá chamam o fenômeno de ‘murmuração dos estorninhos’. Belo resmungo! O bailado de lamentação nada parece com uma silenciosa queixa. Muito menos sugere a indignação condenada nos escritos bíblicos. Antes fossem todas as murmurações tão belas.
Ainda encantado com as imagens, busco conhecer melhor os hábeis protagonistas. Descubro que o estorninho é um pássaro invasor. Frequente em outros continentes, e agora chegado ao Brasil, preocupa as autoridades ambientais. Mas que mal poderiam fazer tão notáveis dançarinos?
Sei que o belo não traz necessariamente o bem. E há de se distinguir na vida a obra do autor, como se possível fosse renegar a maternidade à sua cria. Mas é assim, espíritos artísticos podem germinar arte sem que os autores tenham o mesmo valor. O talento não tem senso. A palavra é em si independente de quem a diz. O belo pode ser prenúncio do mal que vem.
O estorninho, por instinto ou medo, ou talvez por incapacidade de decidir sozinho, se aglomera e passa a bailar no ritmo de um maestro. Sozinho não é nada além de um pássaro. Mas a existência de tantos juntos ameaça outras espécies. Daí ser um pássaro invasor, aviltando o habitat de outros em seu meio natural. E põe em risco a beleza pura e singular do mundo, alimentando-se de frágeis seres que por si encantam como as libélulas e as mariposas.
A performance dessa trupe enfeitiça o céu. Não porque queira nos brindar com sua arte, talvez queira simplesmente nos iludir. Por isso há de se separar mesmo a obra do autor. Às vezes, inebriados pelos movimentos, desconhecemos as reais intenções do seu criador.
Temo pelas espécies que se vão um dia, expurgadas da terra e do ar que as germinou, por forasteiros que um dia simplesmente nos encantaram com seu bailado harmônico e cadenciado. Que fez nossos olhos se embriagarem da beleza no céu e acabaram dançando junto.