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quarta, 03 de julho de 2024
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Luiz Dias Guimarães

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Na carta, o minuto da tragédia

A tragédia é sempre imensamente maior que nós. E não há o que a poesia consiga dela falar. Como somos um só, corremos a socorrer e aliviar a dor. Aflora a solidariedade quanto mais próximo é o sofrimento. A dor nos desperta com oração, dinheiro ou mantimentos lançando vínculos entre mentes e corações.

Muitos de nós correm para salvar alguns. E esses sim são heróis da civilização, a despertar a adormecida.

É momento para ação, não para poesia. Mas como diz a poeta lisboeta Matilde Campilho, a poesia não salva o mundo, mas salva o minuto, e isso é suficiente.

Em meio aos escombros da vida destruída, surge à luz sitiada por água e terror, a carta de Maria Eduarda, menina-anjo de 10 anos, que enviou roupas e brinquedos, e junto uma carta, de  Mato Grosso para destinatários incertos nas flageladas terras gaúchas.

A poesia em forma de carta pode salvar o minuto da consciência humana. Às vezes até definir os rumos da vida. Pena que já não existam tantas cartas, às vezes nenhuma. Ao longo da História foram portadoras de tristes notícias, como declaração de guerra. Mas muito mais mensageiras do amor.

Arrisco dizer que as cartas alimentavam o ímpeto da paixão e aliviavam  o ardor da amada distante. Em papéis brotavam falas do coração, com palavras que hoje seguem apressadas na caixa de e-mails ou pairam congeladas em emojis. Um coração ou uma carinha feliz não contém a dimensão do sentimento expressado à mão por vezes com lágrimas que borram o papel.

Ouso sim dizer que o amor se sustentava pela existência das cartas, como também das flores. Talvez hoje, por inexistirem cartas, as paixões perderam o ímpeto de outrora, quando alimentavam a chama de um sentimento lançado muitas vezes de um front além-mar.

Tanto quanto o amor, as cartas continham esperança. Lembro de uma história familiar de uma tia que, quando jovem, na solidão do vinhedo do pai, encartou uma mensagem no engradado junto com uvas verdejantes. Onde pedia que o jovem que a encontrasse fosse procurá-la para florescer seu destino aprisionado nas vinhas.

Coube ao destino realizar seu sonho, levando a carta às mãos de um jovem balconista de quitanda, que foi em busca da remetente, com ela se casou e gerou imensa família, com mais de dez filhos.

Nem sempre as cartas salvaram a vida ou ao menos traçaram um destino. Muitas delas, de náufragos perdidos nas ilhas, pairaram indefinidamente nas vagas do oceano, aprisionadas em garrafas como caixas de spam. E, convenhamos, para salvar vidas melhor o zap de hoje em dia.

Mas para a esperança, a declaração de amor, nada se iguala a simples cartas, ridículas como dizia Fernando Pessoa, para completar que mais ridículo é quem nunca as escreveu.

A cartinha de Maria Eduarda ganhou a dimensão de um imenso minuto em meio à dor. Nela exprimia sua solidariedade, confessava suas orações pelos desafortunados e manifestava sua esperança: “Espero que as crianças gostem dos brinquedos porque eu os amo muito, principalmente os ursinhos iguais”.

Nada como uma carta para lembrar que as crianças são verdadeiramente as depositárias da esperança e do sonho. Particular ou coletivo, mas sempre intenso, ainda que na figura de dois ursinhos iguais, a nos lembrar que iguais somos todos.

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