Nada além de problemas
Esse é o título de uma comédia/terror de 1991, que foi um fracasso retumbante de bilheteria. Em parte, foi uma tragédia anunciada, pois quando não há nada além de problemas, fica difícil encontrar soluções. Os prêmios “Framboesa de Ouro” que recebeu foram amplamente merecidos.
Na comédia “Muito barulho por nada”, de Shakespeare, também vertida em filme, em 1993, tanta foi a confusão dos personagens, que atrasou a consumação do que era natural. Será que já chamavam mentiras de fake news em Messina?
No entanto, nenhum desses dois títulos e enredos consegue precisar o atual momento vivido pelo Porto de Santos. Estamos num meio-termo. Existem problemas, sem dúvida. Também há soluções, é fato. A questão está no “time”, na carência de visão sistêmica e nas impedâncias proporcionadas pela burocracia e pela legislação vigentes. Aliás, isso vale para praticamente tudo no Brasil, o que tornou os setores de compliance e jurídico mais importantes que a atividade econômica de empresas, também afetando o setor público.
Dario José dos Santos, ou, simplesmente, Dario, jogador que teve a alcunha de “Peito de Aço”, antes de se autodenominar “Dadá Maravilha” – uma das três coisas que conseguem ficar paradas no ar, junto com o helicóptero e o beija-flor -, certa vez afirmou: “Não me venham com problemática, que eu tenho a solucionática!”.
Que bom se assim fosse… Porém, o que se constata no cotidiano é que, para cada solução apontada para um problema, certos setores se encarregam de criar mil empecilhos. Parece que vivem de problemas e não de soluções.
Entretanto, isso confirma a falta de visão sistêmica, com todos os atores tendo um pouco de culpa nisso e os intervenientes externos, mais ainda, com o beneplácito da instabilidade jurídica, fruto de leis confusas e conflitantes, que dão margem a interpretações que, não raro, complicam ainda mais, desestimulando investimentos e ações. Com isso, tudo vira urgência ou frustração de expectativas.
É inegável que a questão dos acessos terrestres ao complexo portuário está sendo equacionada.
No âmbito ferroviário, a Ferrovia Interna do Porto de Santos (FIPS), fruto de um processo inovador no cenário nacional, está com o cronograma em andamento, tendo como objetivo final a duplicação da capacidade atual de movimentação de cargas por esse modal. Três concessionárias se uniram para conciliar investimentos e agendamentos de mútuo interesse.
As renovações de concessões ferroviárias também favoreceram esse processo, na medida em que as concessionárias integram a FIPS.
Os acessos rodoviários são de solução um pouco mais complexa, por conta de licenciamentos ambientais. Isso vale, ao nível macro, tanto para a proposta de uma terceira pista da Rodovia dos Imigrantes, como para uma eventual ligação Suzano-Santos. O governador Tarcísio de Freitas já definiu pelo início de estudos para uma nova ligação, com foco em carga, mas os prazos são preocupantes.
Localmente, há boas perspectivas para a construção de um viaduto de saída nos fundos do Bairro Alemoa e para um novo acesso à margem direita do Porto de Santos. O mesmo vale para a construção da ligação seca Santos-Guarujá, via túnel imerso, e para a Avenida Perimetral da Margem Esquerda.
O agendamento de caminhões tem atenuado os impactos negativos sobre as operações portuárias. A proposta de um novo pátio regulador em Cubatão recebeu elogios e críticas.
Um novo modo de transporte será incorporado, mesmo que indiretamente, à matriz de transportes do Porto de Santos, o Aeroporto Regional de Guarujá, que tem potencial para também operar cargas.
Quanto ao acesso aquaviário, apesar do porto já receber navios de 366 m, a reclamação é com o calado operacional, que depende da maré para viabilizar sua entrada e saída, além de limitar a plena utilização da capacidade de carga das embarcações.
Nesse cenário, a dragagem de aprofundamento para -17 m é uma premência, sendo que, mesmo assim, ainda existirão limitações. Não à toa, a proposta de criação de um terminal mar adentro, em águas profundas, volta e meia vem à tona. O Porto de Santos precisa disso para consolidar sua condição de concentrador de cargas. Condição necessária, mas, como visto, não suficiente.
Também faz parte da equação a mudança do clima associada ao perfil de cargas operadas pelo Porto de Santos.
Eventos climáticos historicamente comuns (chuvas, ressacas e neblina) prejudicam o acesso aos terminais e interrompem operações da maioria dos granéis sólidos, com ênfase nos oriundos do agronegócio, principais itens do comércio exterior do Brasil.
O aumento da ocorrência de eventos climáticos extremos, em intensidade e duração, tendem a impactar ainda mais esse tipo de operação.
Isso vale para todos os portos marítimos do País, é fato. Porém, como já mencionado em artigos anteriores, também existe a concorrência dos portos do Arco Norte, além da potencial influência de ligações bioceânicas que não consideram o Porto de Santos. Afinal, como a maioria dos produtos do agronegócio vem do Centro-Oeste, as alternativas serão selecionadas em função de critérios logísticos, incluindo tempos e fretes.
Tanto os riscos climáticos como os logísticos relativos ao agronegócio precisam ser considerados na definição do futuro do Porto de Santos, como no de outros portos brasileiros. Isso sem falar nos problemas decorrentes de protecionismos internos, adotados por países que impõe restrições às nossas exportações de commodities.
Diversificar a carteira de produtos de exportação do Brasil, incluindo cargas de maior valor agregado, é uma solução, mas também depende da capacidade do país em atrair e fomentar investimentos em produção industrial voltada à exportação, sobretudo próxima a portos.
Por conta dessa possibilidade, sugeri ao Ministério de Portos e Aeroportos que inste para que a revisão do Plano Nacional de Logística (PNL 2035) também inclua a análise de potencial implantação de plataformas de porto-indústria, incluindo Zonas de Processamento de Exportação (ZPEs) em portos brasileiros, definindo o perfil mais adequado de cargas. Com base nessa inclusão, sugeri ao Conselho Nacional de Zonas de Processamento de Exportação (CZPE) que, de posse dessas informações, evoluísse de sua condição de receptor de propostas para fomentador de sua implantação, por meio de chamamentos públicos.
O marco regulatório de ZPE foi alterado em 2021, enfatizando a importância de sua implantação próximo de portos e aeroportos. A possibilidade de autorização de ZPEs à iniciativa privada foi outro avanço significativo, que precisa ser melhor aproveitado em nome da efetiva reindustrialização, da neoindustrialização e da P&D do Brasil.
A cidade de Santos está apta a sediar uma ZPE, tendo a área continental como localização ideal. Outras cidades da Região Metropolitana da Baixada Santista, sobretudo Guarujá, também têm condição de pleitear uma ZPE, ou de estar associada a uma existente, considerando a distância limite de 30 km entre terrenos. Mesmo Cubatão – que não se insere nos quesitos da Resolução nº 29/2021 do CZPE, que define aptidões para sediar uma ZPE – pode aproveitar sua vocação industrial para incrementar as atividades industriais em seu território. A Usiminas, desde a desativação de seus altos-fornos e consequente desmobilização de seus pátios de granéis minerais, possui áreas disponíveis, tendo seu terminal portuário à disposição.
Não faltam opções.
Mas nem só desse “pão” vive a solução dos problemas: a Reforma Tributária também agregou insegurança ao processo, como afirmou, recentemente, o engenheiro Gino Paulucci Jr., presidente do Conselho de Administração da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq).
Como ficarão as ZPEs nesse escopo?
No âmbito geral, a reforma prevê que as exportações ficarão livres do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Mas como ficarão os custos relativos ao transporte de cargas entre uma ZPE e o porto, e a própria operação de portuária, nesse processo?
Aguardamos cenas dos próximos capítulos.
Paramos por aqui? Não!
Ainda há o imbróglio sobre a capacidade de operação de contêineres no Porto de Santos, que envolve disputas entre armadores, por questões concorrenciais, e discussões institucionais.
Mais recentemente, num grupo de discussão sobre portos, a transição energética foi abordada, tendo, como tema, o gás natural liquefeito (GNL) e a possibilidade de sua utilização para abastecimento de navios em portos brasileiros.
Segundo o Portal EPBR, o Brasil dispõe dos seguintes terminais de regaseificação, em operação, em fase de implantação ou autorizados: na Baía de Guanabara (Petrobras) e no Porto do Açu (GNA), no Rio de Janeiro; no Porto do Pecém (Petrobras), no Ceará; no Porto de Sergipe (Eneva); na Baía de Todos os Santos (arrendado pela Petrobras à Excelerate Energy), na Bahia; em São Paulo (Compass), Santa Catarina e Pará (New Fortress Energy). A Secretaria Nacional de Portos ainda deu o aval para a contratação de uma planta de regaseificação no Porto de Itaqui (MA). O Porto de Suape (Oncorp), em Pernambuco, e o Porto do Pecém (Ceiba Energy), no Ceará, também têm projetos nesse âmbito.
A produção de hidrogênio verde também está em pauta, com iniciativas no Nordeste e também no Porto de Santos, a partir da Usina de Itatinga, em Bertioga.
Estudos sobre propulsores de embarcações flex fuel também estão em desenvolvimento, com potencial para utilização vantajosa do etanol. Também há iniciativas visando o abastecimento de embarcações por energia elétrica de terra (onshore power supply, OPS), uma das condições para qualificar “portos verdes”.
Um cenário futuro interessante, mas o atual tem críticas de armadores sobre a demora no abastecimento de bunker em embarcações, no Porto de Santos, o que não foi constatado pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
Considerando tudo o que foi aqui descrito, dá para entender que, se Deus é brasileiro, em nosso território está sendo travada uma disputa acirrada, predatória e autofágica entre o bem e o mal, sendo que os atores sofrem de crise de identidade ou, no mínimo, de múltiplas personalidades, ora propondo soluções, ora problemas.
Até dá para entender os discursos apocalípticos de que o Porto de Santos está em colapso. Mas colapso é uma coisa e limitações são outras.
Há projetos em andamento que contribuirão para solucionar alguns dos problemas. Porém, é preciso conciliar interesses e combinar com os “russos”, para serem concretizados com a presteza mais que necessária. E há que se considerar o cenário atual e tentar otimizar o existente, em obras e processos.
Alguns portos de países desenvolvidos criaram seus Port Community Systems (PCS), reunindo todos os atores envolvidos, públicos e privados, na busca de soluções para as limitações de seus complexos portuários. O Porto de Hamburgo seria uma referência.
No final de 2019, a implantação de um PCS no Porto de Santos passou a ser considerada, inclusive com financiamento externo. O mapeamento começou em 2020, contando com a participação de entidades empresariais e órgãos públicos. Foram definidos os cenários as is e to be.
Alguns dos problemas identificados já foram endereçados e resolvidos isoladamente; a USP foi incluída no processo, mas dependia de recursos físicos e financeiros para desenvolver sistemas e processos. E os resultados, embora positivos, não concretizaram o PCS local.
Recentemente, o Governo do Estado de São Paulo manifestou interesse em criar um PCS para o Porto de São Sebastião, cuja delegação foi renovada. Consta que o Porto de Paranaguá também tem essa intenção.
Não dá para comparar esses complexos portuários com o Porto de Santos, em extensão e complexidade. Porém, eles têm em comum a necessidade: de que todos os entes públicos e privados envolvidos participem do processo, considerando todos os problemas pertinentes, o que implica em bom senso, compromisso e aporte financeiro para implantar e manter um PCS no Porto de Santos, paralelamente aos investimentos necessários a uma solução de acessos e capacidades de médio e longo prazo. O PCS continuaria útil em qualquer cenário futuro.
Obviamente, há preocupação no âmbito da confidencialidade de contratos e estratégias empresariais.
Enfim, há problemáticas galopantes e “solucionáticas” engatinhando, fios de meada que podem ser retomados em prol do desenvolvimento sustentado do Porto de Santos, que é da região, do Estado de São Paulo e do Brasil, independentemente de ser gerido diretamente pelo Governo Federal.
Também há muito barulho que, se baixar um pouco o tom, poderá permitir que os pleitos sejam ouvidos e entendidos de forma mais clara e objetiva.
Disputas deletérias tendem a gerar mais tensão do que a que rompe amarras de navios, resultando em estragos muito maiores.
Dizem que o ótimo é inimigo do bom, e que ser feliz é melhor do que ter razão. Bem, todo o dito popular carrega alguma contradição ou ambiguidade, o que é comum em sínteses.
Dificilmente alcançaremos resultados objetivos e duradouros com base em utopias. Tampouco é aceitável desacreditar em soluções holísticas e conciliadoras, como se fossem um paraíso perdido.
Assim sendo, o diálogo continua sendo o melhor caminho, o que inclui visão estratégica e aprimoramento do arcabouço legal, para deixar de dar “munição” para quem vive e lucra com problemas, sem nunca arcar com as consequências.