Navegando no mar das convenções
Num evento recente, foram abordados aspectos das convenções sobre relações marítimas internacionais e a tentativa de unificação de regras. Essa discussão é sempre necessária, considerando que, segundo a International Maritime Organization (IMO), cerca de 90% do transporte de mercadorias do mundo são feitos pelo modo aquaviário, incluindo navegação interior, cabotagem e longo curso. No caso do Brasil, consta que essa movimentação supera esse percentual!
Foi dada ênfase às Regras de Haia (1924, alteradas em 1968, recebendo a denominação Haia-Visby), de Hamburgo (iniciativa da ONU de 1978, mas que só entrou em vigor a partir de 1992) e de Rotterdam (1998, em vigor a partir de 2004).
Esse tipo de instrumento depende da adesão de países, o que nem sempre ocorre.
O ideal seria sua unificação, mas ainda assim não seria assegurado que todos os atuais 193 países filiados à ONU fossem signatários, em função de interesses divergentes.
O Brasil, por exemplo, não é signatário das Regras de Haia, Haia-Visby e Rotterdam. É signatário das Regras de Hamburgo, mas não ratificou sua adesão. Um dos motivos para essa não aderência é o entendimento de que esses regramentos tendem a favorecer os transportadores, sendo que o Brasil tem se configurado como país “transportado”.
E pensar que no século 19, tínhamos a terceira frota marítima do mundo e que, até a década de 1970, tínhamos grandes estaleiros em atividade no Brasil. É certo que a produção naval nacional sempre esteve atrelada a demandas estatais, inclusive de armadores nacionais, com destaque para o Lloyd Brasileiro, extinto em 1997.
O BR do Mar, incluindo a disponibilização do Fundo da Marinha Mercante (FMM), tende a fomentar a produção naval no Brasil, porém dificilmente colocará nosso país em condições de concorrer com os estaleiros coreanos e chineses na produção de navios de grande porte. O próprio fato da disponibilização desse subsídio já é uma evidência dessa limitação, o que denota a necessidade de repensar nosso arcabouço legal e fiscal para tornar o Brasil competitivo em vários âmbitos.
A reforma tributária, ora em fase de regulamentação, é considerada por alguns como fundamental para o incremento da indústria nacional, em geral. Porém, no âmbito do transporte marítimo, dificilmente será possível que armadores nacionais consigam competir com as internacionais Maersk, MSC, Cosco, CMA-CGM e Hapag-Lloyd.
A Transpetro, estatal, é o único armador nacional entre os 100 maiores do mundo, mas sua área de atuação é ultra específica, restringindo-se basicamente ao transporte de petróleo, gás e outros produtos químicos.
Ainda segundo a IMO, existem mais de 50 mil navios mercantes no mundo.
Os países em desenvolvimento, Brasil incluso, são os principais exportadores, basicamente de “commodities” (granéis minerais e agronegócio), e também os principais importadores, com ênfase em produtos industrializados, de alto valor agregado.
Como já mencionado, não será fácil unificar e uniformizar regras e convenções, ainda mais quando os interesses dos países desenvolvidos e principais armadores tendem a predominar. Esse cenário é desafiador, preocupando exportadores e importadores, e propiciando um mercado extremamente interessante para operadores do Direito especializados nas áreas marítimas, portuárias e aduaneiras.
Nas discussões sobre convenções, também chamou a atenção a menção à Convenção Internacional de Hong Kong para a Reciclagem Segura e Ambientalmente Adequada de Navios. O que fazer com as centenas de embarcações que todos os anos são desativadas? Esse questionamento também vale para estruturas “offshore” descomissionadas, como as plataformas de petróleo, por exemplo.
Tivemos o exemplo recente do imbróglio que foi a destinação do descomissionado navio-aeródromo “São Paulo” e, localmente, o caso do ex-navio oceanográfico Professor W. Besnard. A solução para o “São Paulo” foi o afundamento. Quando ao “Prof. Besnard”…
A principal preocupação é como o desmantelamento de embarcações será procedido. No que se refere ao casco, a destinação tende a ser a indústria siderúrgica. No caso do Brasil, o Estaleiro Rio Grande, no Rio Grande do Sul, faz desmantelamento de embarcações e estruturas marítimas. Consta que a Gerdau aproveita o metal decorrente.
Existem questões comerciais e técnicas envolvidas, mas a Usiminas, caso seja possível reativar um de seus alto fornos, também poderia entrar nesse mercado. Na década de 2010, houve até a possibilidade da empresa construir uma fábrica de blocos navais nas instalações de Cubatão, além da de “blanks”, criada pela Usiminas Mecânica no final da década anterior.
A Convenção de Hong Kong reconhece que “a reciclagem de navios contribui para um desenvolvimento sustentável e, como tal, é a melhor opção para navios que tenham chegado ao fim da sua vida útil”, e pontua a importância da segurança nesse processo e a necessidade de que novas embarcações utilizem materiais e sistemas de propulsão menos impactantes ao meio ambiente.
Em seu artigo 2 – Das Definições, a Convenção define, entre outros termos e expressões:
3 “Autoridade Competente” significa uma autoridade governamental, ou autoridades governamentais, designada por uma Parte como responsável por desempenhar, dentro de uma área, ou áreas, geográficas especificadas, ou dentro de uma área, ou áreas, de conhecimento, tarefas relacionadas com as Instalações de Reciclagem de Navio que estiverem operando dentro da jurisdição daquela Parte, como especificado nesta Convenção.
[…]
10 “Reciclagem de Navio” significa a atividade de desmanchar, completa ou parcialmente, um navio em uma Instalação de Reciclagem de Navios, para recuperar – 3 – componentes e materiais para reprocessamento e reutilização, cuidando, ao mesmo tempo, dos materiais potencialmente perigosos e de outros materiais, e abrange as operações associadas à reciclagem, à armazenagem e ao tratamento de componentes e materiais no local, mas não o seu processamento posterior, ou o seu depósito em instalações separadas.
11 “Instalação de Reciclagem de Navios” significa uma área definida que seja um local, um estaleiro ou uma instalação utilizada para a reciclagem de navios.
12 “Companhia de Reciclagem” significa o proprietário da Instalação de Reciclagem de Navios, ou qualquer outra organização ou pessoa que tenha assumido do proprietário da Instalação de Reciclagem de Navios a responsabilidade pelo funcionamento da atividade de reciclagem de navios e que, ao assumir tal responsabilidade, tenha concordado em desempenhar todas as tarefas e em assumir todas as responsabilidades impostas por esta Convenção.
Também define uma série de procedimentos relativos à segurança e à saúde ocupacional que seguramente implicariam em ajustes na NR 29 – Segurança e Saúde no Trabalho Portuário, entre outras normas regulamentadoras.
Porém, não encontrei menção à responsabilidade de construtores, armadores ou proprietários da embarcação quanto à sua efetiva participação no processo de desmantelamento da embarcação desativada.
Numa analogia simplória com a construção civil, a demolição de uma edificação pode ser contratada, vendida ou gratuita, dependendo do interesse das partes.
No caso do porta-aviões “São Paulo”, após seu descomissionamento, ele foi vendido a uma empresa turca, cuja intenção era de desmantelá-lo. Isso não foi possível pois a Turquia alegou manifestações da justiça brasileira relativas a aspectos previstos na Convenção de Hong Kong, mais especificamente a falta do inventário de materiais perigosos. No caso do “São Paulo”, a presença de algumas toneladas de asbestos (amianto) era o principal problema. “O resultado dessa melodia”, como diz uma antiga canção, que celebrizou a expressão “gato na tuba”, foi o afundamento da embarcação, pela Marinha, a cerca de 350 km da costa pernambucana.
O afundamento de uma embarcação pode ocorrer por múltiplos motivos: causas naturais, mau uso, falta de manutenção, sinistros, imperícia, sabotagem, ataques, etc. Existem milhares, talvez milhões – se considerarmos desde o início das navegações – de embarcações soçobradas nos rios, lagos, mares e oceanos do mundo. Muitos defendem que essa condição as torna parte de um ecossistema marinho.
O incêndio do cargueiro grego Ais Giorgis no Porto de Santos, em 1974, foi um caso em que essa solução não foi prevista nem bem-vinda, muito pelo contrário. Ele foi encalhado no canal do Estuário, onde permaneceu em chamas. Posteriormente, em 1979, uma tempestade resultou em seu afundamento. Ele só foi completamente removido em 2013, utilizando recursos financeiros do Governo Federal, mesmo assim somente após inventário, definição da remoção e destinação dos materiais ainda existentes na embarcação. Qual foi o destino do material desmantelado?
A Turquia é um dos principais importadores de “scrap metal” (sucata, a grosso modo) do mundo, junto com Índia, Paquistão e Bangladesh. Juntos, esses países absorvem aproximadamente 60% desse mercado.A sucata é normalmente utilizada na siderurgia, constituindo um meio de reciclagem de material.
O Brasil é uma referência mundial em reciclagem de alumínio, mas com o aço é um pouco diferente, tal é a dificuldade encontrada, por exemplo, para reciclar carcaças de caminhões que já deveriam ter deixado de circular há muito tempo. O destino desses “paus velhos” poluentes e capengas é geralmente o campo, feiras livres ou portos, onde atuam apenas localmente, em condições de segurança precárias, mas imprescindíveis ao sustento de várias famílias. Programas de reciclagem não têm conseguido resolver esse problema, não apenas por dificuldades de financiamento, como de quem tenha interesse em reciclar. No caso de embarcações, isso é ainda mais complexo.
O desmantelamento e reciclagem de embarcações seria um bom negócio?
Para os países mencionados, parece que sim. Mas será que a implantação plena do disposto na Convenção de Hong Kong manterá essa condição?
É importante asseverar que não é aceitável submeter trabalhadores a atividades perigosas e insalubres em nome da rentabilidade empresarial. Isso tende a caracterizar aviltamento da vida humana, uma virtual escravidão. Porém, é preciso entender qual é o papel dos construtores, armadores e Estados nesse contexto, que não parece estar bem claro na Convenção, ao menos nesse ponto.
Caberia apenas a eles produzir, lucrar e se livrar, sem ônus, da embarcação, finda sua vida útil ou em função de acidentes? Se um navio foi construído utilizando materiais perigosos, não cabe ao construtor arcar, ao menos em parte, com o processo de destinação segura desses produtos, no caso de desmantelamento?
O Costa Concordia foi construído em um estaleiro de Gênova, teve seu batismo de quilha em 2006 por lá e naufragou em 2012, na costa da Itália. Em 2014, ele foi retirado e rebocado ao Porto de Gênova, onde teve seu desmantelamento concluído, em 2016. Muito justo, além de lógico.
Numa época em que tanto se fala em ESG, antes disso já se propunha a Logística Reversa que, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão dos Resíduos Sólidos (SINIR), é definida como:
[…] um instrumento de desenvolvimento econômico e social caracterizado por um conjunto de ações, procedimentos e meios destinados a viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinação final ambientalmente adequada.
No caso do desmantelamento de embarcações, certamente as toneladas de aço e os quilômetros de cabeamento elétrico, entre outros materiais, serão destinados à reciclagem, desde que haja quem compre esses materiais, e instalações para seu processamento. Pode ser um excelente mercado! Quanto à destinação de materiais perigosos, a questão é um pouco mais complexa.
Considerando a Logística Reversa, caberia aos estaleiros que construíram as embarcações essa responsabilidade? Bem, um estaleiro não conta com siderúrgica própria, mas poderia se comprometer a comprar aço produzido a partir do metal reciclado.
E se o estaleiro não mais existir? O armador poderia arcar com os custos da reciclagem ou exigir do estaleiro a utilização desse material. Pode ser que isso já ocorra, até porque seria um incentivo para o desmantelamento e reciclagem. Seria a soma do: “Quem pariu, mantém e balança!”, com o: “Quem comeu a carne que roa o osso!”.
Mas nem tudo é claro ou universal, daí a necessidade de estabelecer convenções e regras, quase sempre sujeitas a interpretações ou literalidades, de acordo com as convicções e interesses dos envolvidos. Assim, transitando entre o “ipsis litteris”, o “ipso facto”, o “dubium” e o “periculum in mora”, sempre haverá um “fumus” além do das chaminés das embarcações.
O problema dessas convenções e regramentos internacionais é que eles têm certa tendência de beneficiar países desenvolvidos, transferindo o problema para os países em desenvolvimento ou pobres.
Alguns países africanos e asiáticos têm se transformado em “lixões” de países desenvolvidos que não fazem sua lição de casa, mas cobram dos emergentes e pobres iniciativas de preservação ambiental draconianas, ou pagam para manterem essa condição com os tais créditos de carbono ou financiamentos com fundos alimentados com recursos oriundos de atividades nem sempre amigáveis com o meio ambiente.
Segundo o Bureau Veritas:
A geração do crédito acontece à medida que os países se esforçam em ações que visam o desenvolvimento sustentável, e buscam evitar o aumento do efeito estufa. Exemplos desses projetos são o empenho em reduzir os níveis de desmatamento, as campanhas para o consumo consciente, o uso de fontes de energia alternativas, entre outros.
Curioso que essa definição fala em redução de níveis de desmatamento, não em aumento de níveis de reflorestamento, o que implicaria em ações nos países desenvolvidos. Assim, esses créditos têm sido usados normalmente para compensações fora de seus territórios, incluindo o financiamento de entidades que, com a melhor das intenções ambientais, acabam por prejudicar a geração de empregos e divisas nos países “beneficiados”. Junto com outros atores também bem intencionados, transformam desenvolvimento sustentado em estagnação socioeconômica.
Assim, os países emergentes acabam virando “detergentes” da falta de responsabilidade pregressa e atual dos países desenvolvidos, e da hipocrisia de alguns de seus mandatários, que nada mais fazem do que praticar protecionismos aos seus produtores, e assegurar mercados externos para seus produtos industrializados.
Convenções e regramentos internacionais são interessantes e necessários, enquanto tratem de forma equânime seus signatários. No âmbito do comércio marítimo, essa condição não tem sido alcançada de forma satisfatória, havendo desequilíbrio entre transportados e transportadores, com ou sem bandeiras de conveniência.
O assunto é complexo, e o Brasil ainda não aderiu efetivamente a nenhum dos convênios e regramentos aqui mencionados.
Faz sentido, por um lado. Mas por outro, é preciso que o planejamento estratégico do país considere como participar de forma mais efetiva e menos submissa às decisões internacionais, em vez de continuar mera vítima das circunstâncias.