O calor do caldo verde
Tomo um prato de caldo verde quente enquanto penso em Portugal, nesta noite invernal. São muitas as heranças que a paternidade nos legou. Os ensinamentos de um pai não são necessariamente perfeitos. A burocracia que herdamos é um exemplo. Mas muitos são bem-vindos, como este caldo verde que passaram a ensinar às colônias desde o século XV e, agora, aquecem meu estômago e minha alma.
Ouço a ventania lá fora, com bater de portas e janelas, como a lembrar que o novo clima normal chegou ao planeta. O El Niño está vindo nos visitar e traz a companhia da insensatez do mundo. No Hemisfério Norte, está sendo esperado neste fim de semana um calor abrasador e mortal. Sicília e Sardenha podem chegar a 48 graus.
As notícias disputam minha atenção com os fiapos de couve e lingüiça que dançam no meu prato. Na Europa, espera-se um anticiclone denominado Cerberus, o monstro do Inferno de Dante na Divina Comédia. Essa onda de calor sucede às inundações do inverno europeu e tende a ser mais fatal que o verão de 2022, quando matou mais de 61 mil pessoas na Europa, só em Portugal mais de 2 mil pessoas, na maioria idosos.
Não só no continente europeu a temperatura assombra. Repercute nos mares, ameaçando a fauna marinha e derretendo o gelo polar. A África sofre, parte da China também. E o Vale da Morte, no desértico sul da Califórnia, pode bater o recorde de temperatura já registrada na Terra, que superou 54 graus há dois anos.
Em Portugal, na disputa do tempo, o calor venceu o azeite, o vinho tinto e a paz que tornavam a vida longeva em suas terras, matando tanta gente que vivia em paz e por isso vivia tanto. A vida lá e cá não é ou não era igual. Aqui temos pressa, lá não. Talvez acostumados ao fato de que os aventureiros navegantes levavam meses e anos para voltar. Além disso, pensamos de forma diferente. Exemplo disso é a lógica de cada um que gera tantas piadas de ambos os lados.
Mas muita coisa mais nos une, brasileiros e portugueses. Vivemos uma década de aproximação maior de nossas gentes, tantos são os brasileiros que foram tentar a vida na beira do Tejo, como nossos avós tentavam embarcando Atlântico abaixo. Há oportunidades lá sim, mas também muitos desafios e frustrações. A política de imigração para repovoar as aldeias luta contra a falta de habitações nas cidades maiores, o que eleva muito os custos. E alguns setores do mercado de trabalho local ressentem a concorrência, como a advocacia.
Se individualmente esse sincretismo atual é incerto, economicamente não. Portugal quer investir mais no Brasil, além de enviar vinhos, azeite e bacalhau. Esta semana, ainda, anunciou-se uma nova linha marítima entre Lisboa e nossos portos. O Brasil tem tido superávit na balança comercial que pode ser ainda maior, porta que é Portugal para a Europa toda.
Na recente visita do presidente Lula a Portugal, foram acordados vários temas. Hidrogênio, saúde e educação entre eles. A tecnologia da informação, a sustentabilidade e os preceitos de ESG também estão nas pautas que se desenvolvem. A recente missão do Conselho ESG do Brasil Export a Portugal, e a já anunciada edição do Portugal Export 2023, desta vez em Brasília, são exemplos do quanto devemos apostar nessa relação filial.
Problemas há lá e aqui. Ambos países vivem às turras com a imbecilidade ideológica, em que a uns falta o pragmatismo que a moderna economia requer para sustentar tanta gente, enquanto outros carecem de poesia em seus corações. Os escândalos de corrupção assombram lá e aqui, o socialismo governamental lusitano se digladia com a direita em meio à crise existencial da TAP e a indefinição de, afinal, onde será o novo aeroporto em que pretendo aterrissar. Os extremos ideológicos parecem imitar o tempo.
Apesar de tudo, aqui o inverno esfria a atmosfera e nos traz a vontade de devorar o caldo verde e lembrar de tantos motivos para apostarmos na fraternidade e parceria econômica. A pauta a se investir é grande, sem dúvida. E os laços de nossos corações, maior ainda, apesar dos memes e das turras. Por mais que os séculos passem, nunca se esquece a origem. É no que penso ao deglutir minha sopa quente, aqui, enquanto lá o calor se expande do prato.