O ridículo do tempo
Seremos todos ridículos um dia e não nos pouparão dos risos. A velha foto do carnaval na infância, o carro antigo e o quintal da avó, agora é tudo démodé. A beleza é efêmera como o próprio tempo. A foto é mera fração da existência como as águas do rio que não conseguem fixar o que vejo. O que era não mais é, esvaiu-se na mutabilidade da estética e se transforma com a imposição da moda. O minimalismo pode ser a chave da felicidade, quando o menos se transforma em mais, e não dá lugar para a moda, inspiração do consumo do que não necessitamos.
“Vou-me embora pra Pasárgada/Lá sou amigo do rei/Lá tenho a mulher que eu quero/Na cama que escolherei”. Os versos de Manuel Bandeira soam como delírio poético de um sonhador. Revi recentemente um clássico documentário em branco e preto que mostra a íntima rotina do poeta, desde o momento em que acordava, calçava meias e sapatos, e comia duas fatias de pão de forma tiradas da torradeira para acompanhar um copo de leite quente.
O minimalismo de Bandeira não o impedia de ser feliz. Sua rotina de vida exigia pouco para produzir sua poesia. As imagens do modesto apartamento causaram-me o sentimento que certamente todos sentem quando vêem uma foto ou um filme antigos, particularmente de um momento na primeira metade do século passado. A estética de hoje dá-nos a sensação de que era sempre um tempo triste, com aqueles móveis escuros, e os personagens em seus trajes antigos, mal sabendo que havia tanta alegria quando lá se viveu. A estética do tempo sempre camufla a felicidade que vira mera lembrança.
Há um paradoxo nisso tudo. O segredo do minimalismo, que faz brotar a felicidade sem depender do que se tem e onde se vive, não convive bem com o minimalismo que o mundo expressa hoje num arranha-céu ou quarto de dormir.
Esse é um ponto crucial. O mundo exterior está composto de formas vazias. Prédios espelhados e esplanadas esturricadas ao sol; salas em tons cinzas ou pastéis, com móveis lisos e retos, onde não há espaço para um bibelô ou um livro esquecido.
O minimalismo da vida não requer um mundo morto. Desconfio daqueles que habitam frias casas ocas, talvez ocas sejam eles. Limitar as coisas para ser feliz não exclui a presença de plantas e arte. Tampouco de uma toalha rendada ou uma meia esquecida no sofá. Há gente vivendo lá!
Hoje encantam-nos os arranha-céus espelhados. Mas o urbanismo e a arquitetura contemporâneos não incluem o cheiro da terra depois da chuva, tampouco o alarido dos pássaros. Pior, em nada se comparam com os palácios e casas de bairro que verdadeiros artistas e artesãos produziram um dia. Os palácios de séculos atrás, admiramos. Os bangalôs de nossos avós nos trazem saudade.
Afinal, coloquial é a vida. Coisas, pequeninas coisas, são extensão do ser. O vaso na beira da janela, o livro não terminado de ler, a cumbuca da cadela. Cidades e salas hoje são vazias e haverá um dia em que as fotos de hoje serão tristes imagens do cinza jardim sem árvores e alarido de cantos nos galhos.
Haverá um dia em que veremos uma fotografia do tempo atual e haveremos de rir de tão fria vida, quando nos afastamos daquele mundo coloquial em que Manuel Bandeira, depois de seu ritual, partia de terno e chapéu, jornal sob o braço, para confraternizar nas ruas com os passantes e sonhar com Pasárgada. Afinal, ao contrário da moda refletida nas velhas fotografias, os sonhos nunca são ridículos.